13 de outubro de 2013

Trechos do Desassossego (4)


O isolamento talhou-me à sua imagem e semelhança. A presença de outra pessoa – de uma só pessoa que seja – atrasa-me imediatamente o pensamento, e, ao passo que no homem normal o contacto com outrem é um estímulo para a expressão e para o dito, em mim esse contacto é um contra-estímulo, se é que esta palavra composta é viável perante a linguagem.

A beleza de um corpo nu só a sentem as raças vestidas. O pudor vale sobretudo para a sensualidade como o obstáculo para a energia. (...) Não sente a liberdade quem nunca viveu constrangido.

O que é preciso, porém, é que nunca tomemos o artificial por natural. É na harmonia entre o natural e o artificial que consiste a naturalidade da alma humana superior.

O mal todo do romantismo é a confusão entre o que nos é preciso e o que desejamos. Todos nós precisamos das coisas indispensáveis à vida, à sua conservação e ao seu continuamento; todos nós desejamos uma vida mais perfeita, uma felicidade completa, a realidade dos nossos sonhos e É humano querer o que nos é preciso, e é humano desejar o que não nos é preciso, mas é para nós desejável. O que é doença é desejar com igual intensidade o que é preciso e o que é desejável, e sofrer por não ser perfeito como se se sofresse por não ter pão. O mal romântico é este: é querer a lua como se houvesse maneira de a obter. "Não se pode comer um bolo sem o perder."

Este mar é água salgada. Este poente é começar a faltar a luz do sol nesta latitude e (9) longitude. Esta criança, que brinca diante de mim, é um amontoado intelectual de células - mais, é uma relojoaria de movimentos subatómicos, estranha conglomeração eléctrica de milhões de sistemas solares em miniatura mínima. Tudo vem de fora e a mesma alma humana não é porventura mais que o raio de sol que brilha e isola do chão onde jaz o monte de estrume que é o corpo.



Bernardo Soares – Livro do Desassossego



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