13 de dezembro de 2015

Trechos do Desassossego (17)

Vivemos todos, neste mundo, a bordo de um navio saído de um porto que desconhecemos para um porto que ignoramos; devemos ter uns para os outros uma amabilidade de viagem. […] E esta a minha moral, ou a minha metafísica, ou eu: Transeunte de tudo - até de minha própria alma -, não pertenço a nada, não desejo nada, não sou nada - centro abstracto de sensações impessoais, espelho caído sentiente virado para a variedade do mundo. Com isto, não sei se sou feliz ou infeliz; nem me importa. 

A única comunicação tolerável é a palavra escrita, porque não é uma pedra em uma ponte entre almas, mas um raio de uma luz entre astros. […] Escrever é objectivar sonhos, é criar um mundo exterior para prémio [?] evidente da nossa índole de criadores. Publicar é dar esse mundo exterior aos outros; mas para quê, se o mundo exterior comum a nós e a eles é o "mundo exterior" real, o da matéria, o mundo visível e tangível? Que têm os outros com o universo que há em mim?

O gládio de um relâmpago frouxo volteou sombriamente no quarto largo. E o som a vir, suspenso um hausto amplo, retumbou, emigrando profundo. O som da chuva chorou alto, como carpideiras no intervalo das falas. Os pequenos sons destacaram-se cá dentro, inquietos.

Estou triste de sentir, e reflicto-o à janela ao som da água que pinga e da chuva que cai. Tenho o coração opresso e as recordações transformadas em angústias.

Ah, quem me salvará de existir? Não é a morte que quero, nem a vida: e aquela outra coisa que brilha no fundo da ânsia como um diamante possível numa cova a que se não pode descer. E todo o peso e toda a mágoa deste universo real e impossível, deste céu estandarte de um exército incógnito, destes tons que vão empalidecendo pelo ar fictício, de onde o crescente imaginário da lua emerge numa brancura eléctrica parada, recortado a longínquo e a insensível.



Bernardo Soares – Livro do Desassossego



13 de novembro de 2015

Os Deuses da Incerteza


Acima da verdade estão os deuses.
A nossa ciência é uma falhada cópia
Da certeza com que eles
Sabem que há o Universo.

Tudo é tudo, e mais alto estão os deuses,
Não pertence à ciência conhecê-los,
Mas adorar devemos
Seus vultos como às flores,

Porque visíveis à nossa alta vista,
São tão reais como reais as flores
E no seu calmo Olimpo
São outra Natureza.




Aguardo, equânime, o que não conheço —
Meu futuro e o de tudo.
No fim tudo será silêncio, salvo
Onde o mar banhar nada.


–– Ricardo Reis


7 de novembro de 2015

Too Young

I am young, I am twenty years old; yet I know nothing of life but despair, death, fear, and fatuous superficiality cast over an abyss of sorrow. I see how peoples are set against one another, and in silence, unknowingly, foolishly, obediently, innocently slay one another. I see that the keenest brains of the world invent weapons and words to make it yet more refined and enduring. And all men of my age, here and over there, throughout the whole world see these things; all my generation is experiencing these things with me. What would our fathers do if we suddenly stood up and came before them and proffered our account? What do they expect of us if a time ever comes when the war is over? Through the years our business has been killing;—it was our first calling in life. Our knowledge of life is limited to death. What will happen afterwards? And what shall come out of us?


Erich Maria RemarqueAll Quiet On The Western Front

1 de novembro de 2015

"Man is in the Forest"

O jovem Walter


A minha infância foi preenchida com a magia dos filmes de Walt Disney. Milhões de crianças tiveram experiências semelhantes ao longo das décadas, suponho. Admiro-lhe a arte e o engenho. No entanto, nunca tinha lido uma biografia do homem que mudou a paisagem da cultura popular Norte-americana.


Esta biografia, escrita meticulosamente por Neal Gabler, relata e comenta a vida de Walter Elias Disney, ou simplesmente, Walt, como ele insistia que os seus colaboradores o tratassem. É uma biografia honesta que navega pelos triunfos e fracassos do homem, sem nunca se esquivar ao lado mais constrangedor, ao lado mais obscuro do magnata de Hollywood.


Com mais de 800 páginas (200 de notas biográficas) não é para leigos curiosos, mas sim para os aficionados de um dos maiores génios criativos do séc. XX. Gabler descreve a infância feliz passada em Marceline, no estado do Missouri. A família Disney passou cinco anos em Marceline, onde o pai tinha uma pequena quinta.  


Walt entregou jornais em Chicago, mentiu sobre a sua idade para poder conduzir uma ambulância da Cruz Vermelha na Primeira Guerra Mundial e atirou-se de cabeça no seu sonho.



Disney, o empreendedor


Disney sempre sentira um entusiasmo pela indústria da animação. Os seus primeiros projectos levam-no à Califórnia, onde criou a sua primeira personagem, Oswald, the Lucky Rabbit. Essa foi também a sua primeira derrota, mas desse desaire nasceu a personagem que hoje o mundo conhece e adora – Mickey Mouse.


O imortal rato, baptizado pela mulher de Walt, e a quem ele próprio deu voz no grande ecrã, tornou-o famoso com o filme Steamboat Willie. No início da Grande Depressão, um dos períodos mais negros da história dos Estados Unidos, o ratinho animado enriqueceu o seu criador e deu trabalho estável a centenas de trabalhadores. Desde então, Walt Disney não parou de produzir filmes animados.



Walt e o irmão Roy

É fascinante conhecer o homem imaginativo e inspirado,  que conduziu os seus animadores por essa aventura inaudita de produzir a primeira película animada a conquistar o coração do público e o respeito dos críticos – Branca de Neve e os Sete Anões.

Disney era um perfeccionista para quem era bastante difícil de trabalhar e não tinha o costume de partilhar o palco com os seus colaboradores. Alguns dos seus empregados sentiam-se traídos pelo patrão, que não lhes dava o crédito devido nas obras em que tanto tinham trabalhado. Outros havia que tinham uma lealdade canina a Walt Disney, que lhes proporcionava todas as condições que eles desejavam para desenvolver as suas ideias, ainda que com as respeitosas distâncias. Um dos artistas conta que, quando o patrão estava no corredor, dava uma sonora tossidela e alguém gritava a famosa fala do Bambi: “O homem está na floresta”, que significava perigo iminente. 

O perfeccionista em acção


A lealdade dos seus trabalhadores foi severamente testada na infame greve de 1941, que ficou conhecida como a guerra civil da animação. Muitos artistas abandonaram o homem que consideravam injusto para com eles e com o seu trabalho. Tudo isto, numa altura em que o estúdio estava enterrado em dívidas.

Como sempre fizera, Walt Disney ignorou os seus opositores e acabou por dar a volta por cima... Apesar do sucesso de filmes como Dumbo e Cinderela, o estúdio nunca mais foi o mesmo... Walt Disney também não.


Neal Gabler não doura a pílula em relação aos dois lados de Walt Disney. Vemos claramente que o homem que inspirava os seus animadores com a sua inesgotável imaginação, engenho e perseverança; que tirava deles os melhores desenhos; que procurava constantemente melhorar os seus projectos – algo que chamava de “plusing” e que não aceitava nada menos do que a perfeição por parte de todos os seus colaboradores era o mesmo homem que tinha dificuldade em aceitar outro ponto de vista que não o seu; era paranóico em relação a comunistas e a possíveis traições por parte dos seus trabalhadores; e que tentava viver as suas fantasias contra tudo e contra todos, enlouquecendo os seus credores.

Uma dessas fantasias era a Disneylândia e o projecto da cidade futurista na Florida. De facto, após a greve de 1941, o empreendedor perdeu muito do seu entusiasmo pelos filmes animados e decidiu criar outra empresa – a WED (acrónimo do seu nome) para criar um parque temático que iria revolucionar o conceito de parques temáticos nos Estados Unidos. A WED representava um regresso às origens para Disney – uma empresa feita por poucos associados – como nos tempos em que ele e um punhado de animadores criavam as animações do rato Mickey.


Esta biografia tem inúmeras notas interessantes, e é um bom exemplo de como escrever uma biografia sem endeusar ou demonizar o homem, explorando todas as facetas da sua vida.


Disney, inspirando os seus animadores

O livro encontra-se disponível na WOOK com o título Walt Disney: The Biography





Também pode ser encontrado na Amazon, com um título ligeiramente diferente: Walt Disney: The Triumph of the American Imagination.


31 de outubro de 2015

Swan Song


Muitas vezes, por detrás de um grande cavalo está uma grande história. Outras vezes, o cavalo conquista o respeito e a admiração dos aficionados pelo seu próprio mérito. É o caso de American Pharoah. E como todos os grandes campeões que provaram o seu valor nas pistas, o potro de três anos teve uma saída de conto de fadas das competições desportivas e deu uma enorme lição a todos quantos ainda duvidavam do seu valor. 

O potro vinha de uma derrota amarga no Travers Stakes (G1) na pista de Saratoga após ter conquistado facilmente o Haskell Invitational (G1) em Monmouth Park. Mas a derrota no Travers Stakes (G1) serviu apenas para apimentar a derradeira vitória do potro na corrida mais rica dos Estados Unidos – o Breeders' Cup Classic (G1).

"Ele deu a todos o que eles queriam ver," – disse o treinador Bob Baffert. – "Nunca vi nenhum outro cavalo igual a ele; nunca treinei nenhum outro igual a ele. Fico feliz pelo Pharoah se despedir das competições como o campeão que é."

American Pharoah fechou com chave de ouro a sua carreira desportiva, vencendo por seis comprimentos e meio, quebrando o recorde da pista de Keenland (que pertencia a Proud Maxx em 2 minutos, 5 segundos e 36 centésimos) por cinco segundos e estabelecendo um novo recorde de 2:00.07 para a distância de 2 mil metros. Conquistou a tão cobiçada Triple Crown e o Breeders' Cup Classic – uma dobradinha a que os fãs estão a chamar de Grand Slam. Ouro sobre azul – tal como todas as grandes histórias devem terminar!




Podem ver a corrida aqui:




Parabéns às ligações de American Pharoah pela vitória no Breeders' Cup Classic (G1)!


27 de outubro de 2015

Something To talk About



No mundo das adaptações, esta é uma das melhores que eu já vi. ”About a Boy” adapta o romance de Nick Hornby com elegância e aquele humor deliciosamente britânico. 

O filme progride naturalmente com um ritmo envolvente, sem momentos desinteressantes. 

Hugh Grant é um veterano da sétima arte e interpreta o Will Freeman de forma muito natural e convincente. 

O jovem Nicholas Hoult, um conhecido actor na televisão britânica, fez a sua estreia no grande ecrã e que estreia foi! Marcus, o jovem desajustado do romance de Hornby, conhece Will, um solteirão despreocupado e mulherengo, e os dois iniciam uma amizade desajeitada, mas enternecedora. 

Toni Collette interpreta Fiona, a mãe de Marcus, que educa o filho sozinha e sofre de uma depressão paralizante. 

Rachel Weisz interpreta a personagem por quem Will se apaixona. Por ela, Will é capaz de actos meio tresloucados. Só Marcus, na sua infinita sabedoria, é capaz de ajudar o solteirão a superar as suas próprias limitações e a ver a vida sob uma perspectiva totalmente nova. 

“About a Boy” é um filme sobre estes dois desajustados da sociedade londrina. 


Vale a pena ver. E rever. 

24 de outubro de 2015

Lua em Quarto Minguante

“I have absolutely no pleasure in the stimulants in which I sometimes so madly indulge. It has not been in the pursuit of pleasure that I have periled life and reputation and reason. It has been the desperate attempt to escape from torturing memories, from a sense of insupportable loneliness and a dread of some strange impending doom.” 






Esta é a capa da primeira edição desse  estrondoso sucesso da literatura juvenil portuguesa, intitulado A Lua de Joana.

     O meu primeiro contacto com este livro foi – digo-o com algum espanto – numa aula de Geografia. Não tenho memória do contexto em que puxaram o assunto mas lembro-me, como se fosse hoje, da professora ler aquele infame carta de 20 de Fevereiro de 1994 diante da turma inteira.

     Como seria de esperar, quando cheguei da escola nessa tarde, descobri que já o tínhamos, graças à popularidade d’ “O Clube das Chaves”.

     Quando Maria Teresa Maia Gonzalez escreveu A Lua de Joana, ofereceu a primeira edição juntamente com outro livro, um dos volumes d’ “O Clube das Chaves”  Uma nota na contracapa dizia: Este volume é oferecido aos compradores d O Clube das Chaves tira a Prova Real e não pode ser vendido separadamente.

     Para quem não tem esta primeira edição, A Lua de Joana foi apoiada pela TVI e pelo padre Vitor Feytor Pinto, o Alto Comissário para o Projecto Vida naquela época.

     A simplicidade da capa deste livro é o que lhe confere o seu poder narrativo. O símbolo do relógio em conjunção com o rosto da protagonista são o nosso meio de entrada na trama. E sem nos darmos conta, temos tudo o que precisamos para iniciar a leitura. 

     Joana Brito vem de uma família afluente e é uma pessoa que tem tudo para vencer na vidaAos 14 anos é uma aluna brilhante; grande jogadora de básquete; vencedora de torneios de xadrez; grande artista gráfica; tem a aprovação dos seus pares (é delegada de turma) e dos professores (é das melhores alunas da turma). A Joana tem, para todos os efeitos, um futuro brilhante pela frente! Normalmente, Deus não é tão generoso de colocar extraordinárias capacidades físicas e intelectuais no mesmo saco de ossos!

     Talvez por isso seja tão difícil compreender e perdoar um ser que, sendo possuidor uma inteligência superior, toma a ignóbil decisão de se envolver com drogas. Mas este será um julgamento injusto, se não levarmos em linha de conta as circunstâncias em que a Joana vive. A sua situação familiar, embora economicamente privilegiada, (é filha de um cirurgião plástico e de uma dona de um pronto-a-vestir) sofre de um sufocante síndrome de alienação. Joana sente que não tem ninguém com quem desabafar em casa, a não ser a Avó Ju. Os seus seus pais são viciados no trabalho e o irmão Jorge é um rebelde inadaptado com quem ela não pode trocar mais que monossílabos e grunhidos. Até agora, não parece uma situação muito diferente de tantas outras famílias portuguesas. Mas essa instabilidade familiar tornou-se avassaladora depois da sua melhor amiga, Marta, sucumbir a uma overdose.

     A perda da Marta foi um momento decisivo na vida de Joana. Incapaz de aceitar a sua morte e de comunicar a sua dor a quem lhe era mais próxima, a jovem entrou em ruptura emocional. A sua sanidade mental prende-se por esse ténue fio de cartas que ela escreve à sua melhor amiga, um acto que muitos considerariam desequilibrado (e que a própria Joana questionou, não sendo, contudo, capaz de lhe dizer finalmente adeus).

     Ela tenta aguentar-se o melhor que pode – na escola, nas actividades extracurriculares, em casa e com os seus amigos mais próximos. Ninguém pode dizer que ela não fez tudo ao seu alcance para se manter 'à tona'. Mas algo vai muito mal desde o momento em que ela começa a escrever as cartas à Marta. Uma e outra vez, ela confessa que tem dificuldades em dormir uma noite descansada devido aos pesadelos constantes que tem com a sua melhor amiga. Ainda em 23 de Outubro de 1992, ela confessa só ter dormido "no máximo, três horas". A privação de sono, além de ser um método de tortura psicológica extremamente eficaz, é também uma forma de baixar os níveis de serotonina no cérebro, o que, com o tempo, leva a vítima a uma depressão clínica.

     Se juntarmos a essa depressão latente a partida da avó Ju, percebemos que a pobre Joana está numa embrulhada emocional demasiado grande, uma espiral descendente da qual não consegue encontrar saída. O choque da perda da avó é tal que ela nem consegue chorar a sua perda. A partir desse dia 2 de Abril de 1993, a depressão da Joana acentua-se e a jovem desinteressa-se por tudo o que antes a fazia feliz.

     Só sobra uma pessoa importante na sua vida. O Diogo, irmão da Marta, e de quem ela era amiga desde que os três eram crianças, era a sua última esperança para tentar perceber o que tinha motivado a mudança radical da Marta e o seu uso de droga nos últimos três meses de vida. O Diogo sempre fora "assim como um irmão" (como ela mesma confessa) e ela não queria perder aquela amizade por nada.

     Quando a Joana entra em rota de colisão com o último amigo que lhe resta… Bem, não é preciso um génio para perceber que a corda parte sempre do lado mais fraco! Tudo começa a propósito dessa tarde de 25 de Maio de 1993, uma tarde envolta em mistério para os mais incautos, mas que grita aos ouvidos dos mais atentos… Aquele evento muda para sempre a dinâmica entre eles. Primeiro, evitam-se, não sabendo como lidar com aquela situação, mas depois entendem-se mais ou menos. Numa das suas cartas, a Joana confessa alegremente à melhor amiga que ela e o Diogo são "quase namorados"… 

     A sua relação evolui para um estranho limbo entre amizade e namoro. E é nesta profunda e enlameada incerteza que os dois vão viver, até ao dia em que o Diogo lhe pede algum dinheiro. Claro que a Joana nada de estranho  nisso, mas nesta altura o leitor começa a desconfiar da atitude…

     Nunca teremos uma resposta cabal para o facto do Diogo estar a refazer os passos da irmã e arrastar a Joana consigo nesse processo destrutivo. Estaria ele, tal como a Joana, simplesmente a tentar compreender o que fizera a irmã enverdar por aquele mesmo caminho? Ou terá sido ele impelido para o mundo das drogas numa tentativa de mitigar o sofrimento causado pelo divórcio dos pais?

     Há outra figura sinistra que entra na vida de Joana por via do Diogo: a Rita, que também havia sido amiga (?) da Marta. A Rita diz – com uma convicção desmesurada – que só consome drogas ocasionalmente e que nunca cairia no erro da Marta e sofrer uma overdose, porque tem controlo sobre o seu corpo. Isto dá que pensar… É o sonho de todo o drogado acreditar piamente que pode controlar a reacção da substância que ingere, mas a verdade é que, para se ser um consumidor casual, um ‘chipper’ como se diz em inglês, a pessoa não pode ter demónios que queira afogar. 

     Conhecem alguém assim? Se é verdade que é tecnicamente possível que haja pessoas que somente tomam drogas quando querem intensificar uma experiência boa, é mais verdade que alguém comece a consumir quando está numa fase má da vida, numa tentativa desesperada de minimizar o seu sofrimento emocional. Se essa experiência funcionar, é quase certo que a pessoa irá repeti-la. 

     Há grandes hipóteses da Rita estar apenas a mentir a si própria, tal como tantos outros toxicodependentes. Mas se levarmos a sério as suas afirmações de que ela nunca cairia no mesmo erro da Marta, que só consome ocasionalmente, então ela estaria na categoria dos “chippers”

     O único motivo que me leva a pensar que ela está em negação é pelo facto de haver poucas pessoas à face da terra que estejam bem resolvidas consigo mesmas, que não tenhas demónios interiores. Qualquer ser que sofra uma dor emocional profunda é o candidato ideal para se tornar emocionalmente dependente de drogas. Não é difícil perceber o porquê: quando se descobre um mecanismo para afogar as mágoas, rapidamente uma pessoa se entrega a esse conforto que parece real, apesar de não o ser. 

     Pela descrição da carta de 20 de Fevereiro de 1994, só podemos concluir que uma dose foi suficiente para “agarrar” a Joana, fazendo-a esquecer-se do inferno em que estava metida e, no espaço de um mês, houve uma incontrolável hemorragia de pertences (incluindo jóias) que serviam para pagar o vício. Em menos de um mês de consumo, a droga toma conta dela. Em Abril desse ano, Joana faz a sua primeira cura internada, mas rapidamente tem uma recaída. Em Maio, pede para ser internada numa clínica de reabilitação. Nenhum leitor fica indiferente a este último rasgo de lucidez. Aumenta a esperança que as coisas vão correr bem…!     

     O que é realmente assombroso nesta obra é o desfecho de toda a trama e como ele subverte por completo as nossas expectativas. Jorge Brito, descrito pela irmã como o mais problemático da família, arranja (sabe-se lá como) uma forma de lidar com os seus problemas, e a Joana… Por outro lado, é fácil pensar que a pessoa a arrastou para o vício lhe sucumba a qualquer altura, mas tal nunca acontece. Nem o Jorge se refugia em substâncias ilícitas nem o Diogo morre.

     Quanto à Joana, é óbvio que ela foi vítima de um fado insuportavelmente injusto. É mais fácil perdoá-la quando compreendemos tudo porque ela passou nos últimos dois anos de vida. Claro que ela tomou uma decisão péssima quando escolheu o caminho da auto-destruição – quer queiramos quer não, foi uma escolha dela – mas por outro lado, pode-se mesmo atribuir culpa a uma adolescente num profundo estado de depressão? Esta palavra nunca é usada no livro mas, à medida que o tempo passa, a Joana vai-nos dando várias pistas sobre o seu estado mental: a perda de interesse nos amigos, o afastamento da família, o crescente desinteresse por actividades que ela gostava, a incapacidade de se concentrar nos estudos… tudo isto são sintomas clássicos de uma depressão clínica. Ela precisava de drogas, sim, mas era de inibidores selectivos da recaptação da serotonina em vez de heroína. E isso ninguém lhe deu!

     Já vi vários comentários de leitores que se perguntavam se a Joana se tinha suicidado ou se tinha sofrido o mesmo destino da sua melhor amiga. Pode parecer confuso, visto que o final é tão abrupto. Na sua última carta, Joana dá-nos duas pistas que me fazem pensar que ela morreu de overdose; primeiro, ela sonha com uma figura que, pela sua descrição, é a Morte; segundo, ela pensa em telefonar à Rita… Os toxicodependentes em recuperação são aconselhados a afastarem-se de pessoas que invoquem neles memórias do consumo de drogas. A Joana queixa-se que o Diogo foi afastado dela porque não era “aconselhável” que eles estivessem juntos mas, na verdade, os psicólogos tomaram a decisão certa quando os afastaram.

     E depois, a Joana telefonou à Rita…

     O que é que aconteceu?

     As memórias da droga foram tão fortes que a Joana recaiu?

     Que dose terá tomado?

     Uma dose forte demais para o seu coração ou pulmões, talvez…

     Esta pergunta nunca terá uma resposta cabal, porque a autora nunca entrou em detalhes sobre o momento final da sua protagonista. Se ela não tivesse pegado no telefone, ainda podia estar viva.

     Que ironia cruel que aquele último gesto de comunicação tenha sido o catalisador da sua morte…

     É de cortar para sempre o coração… 

19 de outubro de 2015

Of Sheep and Humans

"The problem more generally is that there was too little critical thinking. This problem is known as groupthink, and it frequently occurs in long-standing, highly cohesive groups. Members of such groups often have such a strong desire to stay together and support the group that they suspend their critical thinking and reality testing. In short, they conform too much, too quickly, and too easily.
What is even stranger about groupthink is that it has a certain sort of self-inflicted quality about it. Because the members of the group are so highly motivated to get along, they may engage in selfcensorship. They may keep their concerns to themselves. After all, no one wants to rock the boat. Yet this only makes things worse. If all of the members in the group keep their concerns to themselves, then it will appear that everyone agrees, even if he or she does not. This is called the illusion of unanimity. If everyone agrees (or at least seems to), then the decision must be a good one.
The illusion of unanimity can give rise to another illusion that works something like this: “we are an extremely competent group of doctors, we have made lots of amazing diagnoses in the past, and we all agree on this latest diagnosis. How can we possibly be wrong?” This is called the illusion of invulnerability. The group convinces itself that it cannot be wrong."

House and Psychology: Humanity Is Overrated – Ted Cascio

16 de outubro de 2015

Devils Like Us

The silence spreads. I talk and must talk. So I speak to him and say to him: "Comrade, I did not want to kill you. If you jumped in here again, I would not do it, if you would be sensible too. But you were only an idea to me before, an abstraction that lived in my mind and called forth its appropriate response. It was that abstraction I stabbed. But now, for the first time, I see you are a man like me. I thought of your hand-grenades, of your bayonet, of your rifle; now I see your wife and your face and our fellowship. Forgive me, comrade. We always see it too late. Why do they never tell us that you are poor devils like us, that your mothers are just as anxious as ours, and that we have the same fear of death, and the same dying and the same agony—Forgive me, comrade; how could you be my enemy? If we threw away these rifles and this uniform you could be my brother just like Kat and Albert. Take twenty years of my life, comrade, and stand up—take more, for I do not know what I can even attempt to do with it now."
It is quiet, the front is still except for the crackle of rifle fire. The bullets rain over, they are not fired haphazard, but shrewdly aimed from all sides. I cannot get out.
"I will write to your wife," I say hastily to the dead man, "I will write to her, she must hear it from me, I will tell her everything I have told you, she shall not suffer, I will help her, and your parents too, and your child– –"


Erich Maria Remarque – All Quiet On The Western Front



13 de outubro de 2015

Trechos do Desassossego (16)

Penso às vezes, com um deleite triste, que se um dia, num futuro a que eu já não pertença, estas frases, que escrevo, durarem com louvor, eu terei enfim a gente que me "compreenda", os meus, a família verdadeira para nela nascer e ser amado. Mas, longe de eu nela ir nascer, eu terei já morrido há muito. Serei compreendido só em efígie, quando a afeição já não compense a quem morreu a só desafeição que houve, quando vivo. Um dia talvez compreendam que cumpri, como nenhum outro, o meu dever-nato de intérprete de uma parte do nosso século; e, quando o compreendam, hão-de escrever que na minha época fui incompreendido, que infelizmente vivi entre desafeições e friezas, e que é pena que tal me acontecesse. E o que escrever isto será, na época em que o escrever, incompreendedor, como os que me cercam, do meu análogo daquele tempo futuro. Porque os homens só aprendem para uso dos seus bisavós, que já morreram. Só aos mortos sabemos ensinar as verdadeiras regras de viver.

Há um grande cansaço na alma do meu coração. Entristece-me quem eu nunca fui, e não sei que espécie de saudades é a lembrança que tenho dele. Caí contra as esperanças e as certezas, com os poentes todos.

Os sentimentos que mais doem, as emoções que mais pungem, são os que são absurdos – a ânsia de coisas impossíveis, precisamente porque são impossíveis, a saudade do que nunca houve, o desejo do que poderia ter sido, a mágoa de não ser outro, a insatisfação da existência do mundo. Todos estes meios tons da consciência da alma criam em nós uma paisagem dolorida, um eterno sol-pôr do que somos.

Existo sem que o saiba e morrerei sem que o queira. Sou o intervalo entre o que sou e o que não sou, entre o que sonho e o que a vida fez de mim, a média abstracta e carnal entre coisas que não são nada, sendo eu nada também.

Quantas coisas, que temos por certas ou justas, não são mais que os vestígios dos nossos sonhos, o sonambulismo da nossa incompreensão! Sabe acaso alguém o que é certo ou justo? Quantas coisas, que temos por belas, não são mais que o uso da época, a ficção do lugar e da hora? Quantas coisas, que temos por nossas, não são mais que aquilo de que somos perfeitos espelhos, ou invólucros transparentes, alheios no sangue à raça da sua natureza!

Bernardo Soares – Livro do Desassossego



5 de outubro de 2015

God's Power

Proposition 34: God's power is identical with his essence.

Proof — From the sole necessity of the essence of God it follows that God is the cause of himself  and of all things. Wherefore the power of God, by which he and all things are and act, is identical with his essence.

— Baruch Espinoza


Or, in simpler terms



Is Hiromu Arakawa a genius, or what?

It's a rhetorical question. 😉

4 de outubro de 2015

Fullmetal Linchpin

After noticing the increase of visits from the United States and Japan, I’ve decided to write this post in English. I hope it’s easier to understand this way. 


In every narrative, there’s one scene that exposes its soul, grabs the audience, and makes us go “I need to know more”. These moments make us feel close to the characters in a way that would be impossible if we just read chapter one, or watched the first episode.

It’s often these revelatory scenes – rather than the 3-episode rule – that make us marathon entire shows.

Since I’ve reviewed Fullmetal Alchemist, I thought I should touch upon my favorite scene.



This is a very subtle moment that unfolds in a very subtle chapter, and it’s a perfect display of the author’s ingenuity. I speak of a scene in chapter 9 (volume three). While waiting for the repairs to his automail, Edward goes to the cemetery to visit his mother’s grave, followed by Den, the faithful Rockbell family dog.

You can see the remnants of the Elric house, as well as the large charcoaled tree where the swing was set up. Ed stays there for a while, in quiet contemplation.

This is a rare, understated moment, unrivalled in the manga. In a story filled to the brim with action, drama and humor, there aren’t many moments of quiet character introspection.


It’s fascinating to see the usually relentless and high-strung Edward in this moment in the story. As a person, Ed spent many years repressing his anguish, denying himself the luxury of crying and venting his anger at his fate (perhaps because his brother is in a body unable to cry).

Despite the tragedy that has affected the brothers, and for which he feels terribly responsible, Ed accepts his punishment, but tries incredibly hard to return his brother’s soul to its original body. The remorse they both feel puts their relationship under an oppressive tension throughout much of the narrative. 

Ed’s relationship with Pinako and Winry is also fraught with anxiety; on one hand, they saved him, but on the other, he’s completely dependent on them for the maintenance of his automail. It can’t be easy for someone as proud and independent as Ed to see himself so helpless and heavily reliant on their assistance.

The day the Elric brothers set their house on fire was the lowest point of their young lives. It’s not far-fetched to think Ed would’ve given up his life, had it not been for his tenacious nature to drag him halfway around the country in search of a solution to return his brother to his original body. That tenacity forces him to maintain a brave facade to the world (although his brother and Winry know the truth).

It’s rather difficult to reconcile the image that Hiromu Arakawa so carefully built of Edward Elric, the young prodigy, State Alchemist extraordinaire, and hero of the people, with Ed, the mutilated orphan from Resembool.




Ed ends up in his hometown for repairs after Scar destroys his arm, and Al suggests he pay a visit to their mother’s grave. With a spare leg to help him around the village and his flaming red jacket exposing a flowing right sleeve, the boy takes Den and limps towards the cemetery. He lingers in front of the grave, quietly mourning the loss of his mother, until a familiar hill gets his attention. 

















Meanwhile, Pinako Rockbell recounts the events of the brothers’ tragic past to Major Armstrong. We next see Ed before the remains of the home where the Elric family had once lived happily. The only thing left standing is the old tree where the swing was set. 























After a moment of silent contemplation, Edward and Den exchange a knowing look, and the two return home. 




So why is this scene so important and so unique in the structure of the story? Because the audience has privileged insight on the protagonist, without him saying a word in his defense. At once, we are shown Ed's past, present, and future, which makes us root for him on a personal level like never before. If this moment existed in a Broadway musical, we’d be hearing Edward’s ‘I want song at this point. 

This scene is made a little more significant due to Den’s presence. His relationship with Den differs from all others. The dog is a very supportive presence for him. Ed doesn’t have to put up his brave front. At this point in the story, the author gives us a brief glimpse of her protagonist in his ‘purest state’. Edward can mourn his losses openly, with Den as his only witness.

According to an art book, Den saved Edward from getting hit by a train when he was younger. She lost her left foreleg in that brave act of rescue. This piece of back story is depicted in a video game, entitled “Fullmetal Alchemist: To the Promised Day”. 



So, when Pinako tells major Armstrong that Ed has Resembool’s best bodyguard with him, she wasn’t exaggerating! In a sequence of pages, Hiromu Arakawa slowly peels away the layers she wraped around her young protagonist, exposing him to the audience in a way that’s never replicated. Who is Edward Elric when no one’s around, when he’s not possessed by the remorse for what he did to his younger brother, when he’s free from the shame of depending on people like the Rockbells, without the weight of the anger for those who abandoned him? A tenderhearted kid.



The mangaka draws him with a warm expression, a rare one for Ed... She had no benefit of movement, sound or voice acting to help her; she had to sell it with just pen and paper. And, boy, did she sell it! The readers of Fullmetal Alchemist got used to a fairly exciting narrative by this time, which makes this quiet moment go right over their heads, because they’re waiting for the next exciting moment. I think the author was very smart to write this scene in such a low-key chapter.        




Transitioning from paper to screen, this scene was left untouched, to my joy and amazement. The animators were zealous and kept Edward’s expressions when visiting his mother’s grave and looking at Den. 

What strikes me most about this scene? Being such a low-key moment, it was to be expected that the director decided it was a waste of time to animate… After all, that happened to so many good moments! But this scene was entirely kept in. The cinematography is excellent, and the song used throughout the scene is the famous track titled “Trisha’s Lullaby”. 

There is one final element that the manga doesn’t have: voice. I have watched the original Japanese audio, the English dub, and the Brazilian dub. Romi Park, Vic Mignogna, and Marcelo Campos all make this moment great: what the mangaka did visually, they did with their voices. There is a sharp difference in the tone Ed uses to speak to Den, contrasting with his tone for the rest of the series. 

This simple moment doesn't feature in any list of favorite FMA moments. As far as I know, Im the only person to give it attention, but that doesn't bother me. The reason I think it's ingenious is because its like watching a lunar eclipse at four in the morning… The majority of people would rather sleep. The FMA audience is already thinking about the Philosopher Stone in Central, they’re not paying close attention to this down time in the story. Of course, Hiromu Arakawa takes full advantage of that, and opens a tiny window to her protagonist’s soul, letting us see him for a second without all his defence mechanisms. 

It is indeed a unique moment!