8 de julho de 2015

O Rei Sem Coroa – Parte 1

“O viajante ideal não tem planos fixos, nem tem pressa de chegar ao destino.” 

― Lao Tzu




Os anos 80 foram pródigos em animação japonesa inspirada em obras-primas da literatura ocidental que muita alegria deram à criançada da minha geração. Já os anos 90 trouxeram-nos uma verdadeira pedra preciosa da anime japonesa, de inspiração chinesa, pela qual o mundo se apaixonou irremediavelmente: Dragon Ball – a criação desse mestre mangaka Akira Toriyama. (Nota: os japoneses trocam a ordem do nome e do sobrenome) 


Akira Toriyama-sensei

Sim, a série que apaixonou o mundo e parou os estudantes universitários portugueses tem as suas raízes num épico da literatura chinesa do séc. XVI, intitulado Journey to the West.

Journey to the West

Esta epopeia asiática centra-se em duas personagens: o monge Xuanzang (que viaja para oeste para encontrar escrituras sagradas do Budismo) e Sūn Wùkōng, o Rei Macaco que nasceu de uma pedra nas montanhas de flores e frutos.

O Rei Macaco e Son Goku

Embora o Rei Macaco seja uma personagem periférica, esta história é omnipresente na sua terra natal e é suficientemente conhecida no Japão para os garotos japoneses reconhecerem os traços da epopeia na personagem de Son Gokū [孫悟空] (forma como os nipónicos pronunciam Sūn Wùkōng) e nos seus companheiros do mega sucesso de Akira Toriyama.


Da épica saga chinesa, Dragon Ball herdou o herói com cauda de macaco, de espírito aventureiro e indomável, bem como uma verdadeira panóplia de conceitos das três filosofias que dominam o Oriente: Confucionismo, Daoismo e Budismo 1. Contudo, para um petiz telespectador do Ocidente,(como grande parte de nós) o Dragon Ball não era mais do que uma história divertida com personagens divertidas e torneios mundiais de artes marciais com lutas emocionantes.  



Na verdade, o Dragon Ball não é nada disso. As lutas são meros motivos narrativos que ornamentam temas mais profundos. 



Antes de continuar, preciso de deixar algo bem claro: Akira Toriyama é um génio, mas ele próprio sempre admitiu que nunca fez grandes planos para a sua obra. A sua escrita é orgânica, espontânea, porque ele prefere surpreender-se a si próprio com as suas ideias ao invés de obedecer a um plano que lhe aprisione a imaginação. Enquanto artista, Toriyama é um comediante; ele adora desenhar situações divertidas e brincar não só com as imagens como também com os nomes. Todos os nomes das suas personagens são um trocadilho com uma qualquer palavra inglesa, normalmente relacionada com comida.

Então, se o criador não leva a sua criação demasiado a sério, valerá a pena analisar esta série?


Bem, lá porque o autor possa não ter reflectido aprofundadamente sobre tudo isto, não quer dizer que a manga e o animé não contenham certas características. Segundo Roland Barthes, a narrativa é independente da vida biográfica e das intenções do seu autor. Assim, não é difícil imaginar que o Dragon Ball desenvolva temas, motivos e símbolos que lhe conferem uma profundidade invulgar.



Mas antes de avançar tenho uma confissão a fazer. A nostalgia não é o único motivo que me leva a escrever este post sobre este mangaka nem sobre esta obra em particular, nem tão-pouco é por acreditar que o Dragon Ball tem um significado mais profundo que pode escapar à compreensão do seu público-alvo; na verdade, não há como não nutrir uma imensa admiração por um artista como Akira Toriyama. Um confesso preguiçoso que dizia passar grande parte da semana a divertir-se com modelos de plástico para depois escrever, desenhar e pintar 15 páginas de manga em pouco mais de dia e meio… Todas as semanas. Durante onze anos! Este esforço hercúleo equivale a 519 capítulos da manga, uma média de 7. 785 páginas. Como não admirar este artista?!

Feito o aparte e esclarecidas as intenções, vamos ao que interessa.


O kanji para Gokū
O nome que Toriyama escolheu para o seu herói é Son Gokū  É de notar que originalmente a personagem da obra de Wu Cheng'en não tinha nome. Foi baptizado de Sūn Wùkōng após completar um rigoroso treino espiritual dado por um mestre Taoista. Não é tanto um nome, senão um título que significa algo como 'discípulo que alcançou a perfeita compreensão da extinção do vazio e do não-vazio'. Trocado por miúdos, isto significa que o Rei Macaco atingiu a iluminação espiritual.

Toriyama disse que tencionava que o seu protagonista fosse um macaco, mas a referência ao épico chinês nunca foi mais do que isso: uma porta de entrada por onde os garotos japoneses pudessem entrar, um piscar de olhos do autor ao seu público para que eles reconhecessem de imediato a alusão. 

A primeira saga da manga é uma busca épica por esses mágicos objectos que, quando reunidos, dão a possibilidade de realizar qualquer desejo. Toriyama escreveu-a de forma descontraída e divertida, com muito humor à mistura. Esta era uma manga muito diferente do seu anterior sucesso, Dr. SlumpDe Journey to the West apenas ficou a cauda de macaco, o bastão mágico, a nuvem que o nosso herói usa para se deslocar e o facto das personagens viajarem para oeste. A partir daqui, as referências perdem-se na narrativa que Toriyama vai tecendo ao sabor da imaginação. Aquela primeira saga foi o início de uma viagem irregressível para ele, para nós e para a história da manga japonesa.

No final, apesar do apoio cultural de Wu Cheng'en, Dragon Ball não era uma manga particularmente popular entre os leitores. Os seus conceitos filosóficos diluíam-se no bom-humor das personagens, mas a história não parecia ser especialmente captivante.

O autor decidiu torná-la mais popular, dando início a outra saga onde introduziu o conceito do Torneio Mundial de Artes Marciais, vindo dos tempos áureos de Dr. Slump. A partir daí, o sucesso do Dragon Ball estava garantido.

Na segunda parte, irei falar detalhadamente sobre os temas, motivos e símbolos que regem a obra-prima de Akira Toriyama.


1. Os conceitos budistas e taoistas, herdados de Journey to the West, presentes na obra de Toriyama são explicados de forma esplêndida por Derek Padula, um letrado do universo Dragon Ball, que escreveu uma série de livros intitulada Dragon Ball Culture. Para os verdadeiros amantes da manga, este conjunto de seis livros é de leitura obrigatória!) 

Sem comentários:

Enviar um comentário