13 de junho de 2015

Trechos do Desassossego (14)

O governo assenta em duas coisas: refrear e enganar. O mal desses termos lantejoulados é que nem refreiam nem enganam. Embebedam, quando muito, e isso é outra coisa.

Tudo quanto de desagradável nos sucede na vida - figuras ridículas que fazemos, maus gestos que temos, lapsos em que caímos de qualquer das virtudes - deve ser considerado como meros acidentes externos, impotentes para atingir a substância da alma. Tenhamo-los como dores de dentes, ou calos, da vida, coisas que nos incomodam mas são externas ainda que nossas, ou que só tem que supor a nossa existência orgânica ou que preocupar-se o que há de vital em nós. Quando atingimos esta atitude, que é, em outro modo, a dos místicos, estamos defendidos não só do mundo mas de nós mesmos, pois vencemos o que em nós é externo, é outrem, é o contrário de nós e por isso o nosso inimigo. Daí Horácio, falando do varão justo, que ficaria impávido ainda que em torno dele ruísse o mundo. A imagem é absurda, justo o seu sentido. Ainda que em torno de nós rua o que fingimos que somos, porque coexistimos, devemos ficar impávidos - não porque sejamos justos, mas porque somos nós, e sermos nós é nada ter que ver com essas coisas externas que ruem, ainda que ruam sobre o que para elas somos. A vida deve ser, para os melhores, um sonho que se recusa a confrontos.

A experiência directa é o subterfúgio, ou o esconderijo, daqueles que são desprovidos de imaginação. Lendo os riscos que correu o caçador de tigres tenho quanto de riscos valeu a pena ter, salvo o do mesmo risco, que tanto não valeu a pena ter, que passou. Os homens de acção são os escravos involuntários dos homens de entendimento. As coisas não valem senão na interpretação delas. Uns, pois, criam coisas para que os outros, transmudando-as em significação, as tornem vidas. Narrar é criar, pois viver é apenas ser vivido.

Nós outros todos, que vivemos animais com mais ou menos complexidade, atravessamos o palco como figurantes que não falam, contentes da solenidade vaidosa do trajecto. Cães e homens, gatos e heróis, pulgas e génios, brincamos a existir, sem pensar nisso (que os melhores pensam só em pensar) sob o grande sossego das estrelas. Os outros - os místicos da má hora e do sacrifício - sentem ao menos, com o corpo e o quotidiano, a presença mágica do mistério. São libertos, porque negam o sol visível; são plenos, porque se esvaziaram do vácuo do mundo.

Um homem pode, se tiver a verdadeira sabedoria, gozar o espectáculo inteiro do mundo numa cadeira, sem saber ler, sem falar com alguém, só com o uso dos sentidos e a alma não saber ser triste.


Bernardo Soares – Livro do Desassossego



Sem comentários:

Enviar um comentário