Na ampla sala de jantar das tias velhas
O relógio tictaqueava o tempo mais devagar.
Ah o horror da felicidade que se não
conheceu
Por se ter conhecido sem se conhecer,
O horror do que foi porque o que está está
aqui.
Chá com torradas na província de outrora
Em quantas cidades me tens sido memória e
choro!
Eternamente criança,
Eternamente abandonado,
Desde que o chá e as torradas me faltaram
no coração.
Aquece, meu coração!
Aquece ao passado,
Que o presente é só uma rua onde passa quem
me esqueceu...
Na
noite terrível, substância natural de todas as noites,
Na
noite de insónia, substância natural de todas as minhas noites, Relembro,
velando em modorra incómoda,
Relembro
o que fiz e o que podia ter feito na vida.
Relembro,
e uma angústia
Espalha-se
por mim todo como um frio do corpo ou um medo.
O
irreparável do meu passado — esse é que é o cadáver!
Todos
os outros cadáveres pode ser que sejam ilusão.
Todos
os mortos pode ser que sejam vivos noutra parte.
Todos
os meus próprios momentos passados pode ser que existam algures,
Na
ilusão do espaço e do tempo,
Na
falsidade do decorrer.
Mas o
que eu não fui, o que eu não fiz, o que nem sequer sonhei;
O que
só agora vejo que deveria ter feito,
O que
só agora claramente vejo que deveria ter sido —
Isso
é que é morto para além de todos os Deuses,
Isso
— e foi afinal o melhor de mim — é que nem os Deuses fazem viver...
Se em
certa altura
Tivesse
voltado para a esquerda em vez de para a direita;
Se em
certo momento
Tivesse
dito sim em vez de não, ou não em vez de sim;
Se em
certa conversa
Tivesse
tido as frases que só agora, no meio-sono, elaboro —
Se
tudo isso tivesse sido assim,
Seria
outro hoje, e talvez o universo inteiro
Seria
insensivelmente levado a ser outro também.
Mas
não virei para o lado irreparavelmente perdido,
Não
virei nem pensei em virar, e só agora o percebo;
Mas
não disse não ou não disse sim, e só agora vejo o que não disse;
Mas
as frases que faltou dizer nesse momento surgem-me todas,
Claras,
inevitáveis, naturais,
A
conversa fechada concludentemente,
A
matéria toda resolvida...
Mas
só agora o que nunca foi, nem será para trás, me dói.
O que
falhei deveras não tem esperança nenhuma
Em
sistema metafísico nenhum.
Pode
ser que para outro mundo eu possa levar o que sonhei.
Mas
poderei eu levar para outro mundo o que me esqueci de sonhar?
Esses
sim, os sonhos por haver, é que são o cadáver.
Enterro-o
no meu coração para sempre, para todo o tempo, para todos os universos.
Nesta
noite em que não durmo, e o sossego me cerca
Como
uma verdade de que não partilho,
E lá
fora o luar, como a esperança que não tenho, é invisível p’ra mim.
–– Álvaro de Campos
Feliz 125º aniversário, Fernando!
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