As suas conferências no
Nevada estavam destinadas a ser um enorme sucesso. As pessoas viam-no como
propriedade sua e, em Carson e Virgínia, os espectáculos estavam sempre
esgotados. Especialmente em Virgínia, os seus amigos insistiram e pediram-lhe
para repetir o espectáculo, mas ele negou-se terminantemente.
“Eu
ainda só tenho uma conferência,” disse ele. “Não posso dá-la duas vezes na
mesma cidade.”
Mas
Steve Gillis, aquele diabinho irresponsável, que tinha ido a Virgínia
novamente, concebeu um plano que tornaria necessário que ele desse outra
conferência, e até lhe deu um tema. O plano de Steve era muito simples: aliviar
o conferencista dos seus fundos por meio de um assalto de estrada amigável e
dar-lhe o tópico da sua conferência seguinte.
Em
Roughing It, Mark Twain relata uma
versão correcta deste assalto fingido, embora lhe faltem alguns detalhes.
Apenas uns anos antes (estávamos em Abril de 1907), na sua cabana em Jackass
Hill, na companhia de Joseph Goodman e do seu biógrafo, Steve Gillis fez a sua
confissão no seu “leito de morte” como aqui se lê:
“A
conferência de Mark Twain teve lugar no teatro lírico Piper, em 30 de Outubro
de 1866. Os habitantes de Virginia City já tinham ouvido muitas conferências
antes, mas esses tinham sido meros espectáculos menores, comparados com as de
Mark. ele poderia ter casas de espectáculos lotadas durante uma semana.
Implorámos-lhes que desse outra oportunidade àquelas pessoas, mas ele
recusou-se a repetir e sua conferência. Ele dirigia-se para Carson e voltaria
para dar uma conferência em Gold Hill, cerca de uma semana depois; eu e o seu
agente, Denis McCarthy, formulámos um plano para que ele fosse assaltado na
fronteira entre Gold Hill e Virgínia, após a conferência de Gold Hill, quando
ele e Denis trouxessem o dinheiro.” A fronteira era um bom local solitário e
era famoso pelos seus assaltos. Tínhamos connosco o marechal da cidade, George
Birdsall, e conseguimos que Leslie Blackburn, Pat Holland, Jimmy Eddington, e mais
um ou dois velhos amigos do Sam se juntassem a nós. Todos nós o adorávamos e
sempre o apoiaríamos. Este era o tipo de amigos que Mark tinha no Nevada. Se
ele tinha inimigos, nunca ouvi falar deles.”
“Não
dissemos nada ao Dan de Quille, ou ao Joe, porque o Sam era convidado do Joe, e
nós temíamos que ele lhe dissesse alguma coisa. Não dissemos nada ao Dan porque
queríamos que ele relatasse um assalto genuíno e fizesse uma grande sensação.
Algo que iria lotar um teatro lírico por dois dólares por bilhete para ouvir o
Mark contar essa história.”
“Tudo
correu muito bem. Quando o Mark estava a terminar a sua conferência em Gold
Hill, os ladrões foram esperar para a fronteira, mas o público de Mark fez-lhe uma
recepção após a sua conferência e nós quase morremos congelados à espera que
ele chegasse. Por fim, eu voltei para ver o que se passava. Sam e Denis vinham
a chegar, carregando um saco meio cheio de prata. Eu segui-os sem ser visto e
soprei um apito de um polícia, para assinalar aos rapazes quando os
conferencistas estivessem a aproximar-se do local combinado. Ouvi o Sam dizer
ao Denis:”
‘Estou
feliz por haver um polícia na fronteira. No meu tempo, não havia um.’
“Por
essa altura, os rapazes (todos com máscaras pretas e dólares de prata na língua
para lhes disfarçar as vozes) apareceram, dispararam seis tiros para o ar e
disseram ao Sam e ao Denis para colocarem as mãos no ar. Os ladrões chamavam-se
uns aos outros por ‘Beauregard’ e ‘Stonewall Jackson’. Obviamente, Denis e Mark
puseram as mãos no ar, embora o Mark não estivesse nem um pouco ansioso ou
assustado. Ele falou com os assaltantes no seu tom de sempre. Disse-lhes:”
‘Não
façam movimentos bruscos com essas pistolas. Elas podem disparar
acidentalmente.’
“Disseram-lhe
para entregar o relógio e o dinheiro, mas quando ele baixou as mãos, ordenaram-lhe
que as colocasse novamente no ar. Ele perguntou-lhes como é que eles queriam
que ele lhes desse os seus valores se ele tinha as mãos no ar. Ele disse que
seus tesouros não estavam no céu. Pediu-lhes para não lhe levarem o relógio,
que lhe fora oferecido por Sandy Baldwin e Theodore Winters aquando o seu posto
de Governador da Terceira Câmara, mas nós levámo-lo na mesma.”
“Sempre
que ele começava a baixar as mãos, nós obrigávamo-lo a levantá-las novamente.
Até que ele disse:”
‘Não
sejam tão violentos. Eu fui educado com carinho.’
“Depois,
dissemos-lhe e ao Denis para manterem as suas mãos no ar durante quinze minutos
depois de nos irmos embora – para nos dar tempo de voltar para Virginia e estabelecermo-nos
quando eles regressassem. Quando nos afastámos, Mark chamou-nos:”
‘Ouçam
lá, esqueceram-se de uma coisa.’
‘Do quê?’
‘Do saco, ora essa.’
“Ele
esteve sempre calmo. Na sua auto-biografia, o senador Bill Stewart conta uma
grande história do quão assustado Mark estava e de como fugiu, mas Stewart estava
a três mil milhas de Virginia nessa altura e, mais tarde, ficou chateado com
Mark porque este fez uma piada sobre ele em Roughing
It”.
“Denis
quis baixar logo as mãos, após eles se terem ido embora, mas Mark disse:”
“‘Não,
Denis, eu estou habituado a obedecer a ordens quando são dadas de uma forma tão
convincente; manteremos as mãos no ar por mais quinze minutos por precaução.’”
“Quando
o Mark e o Denis chegaram, nós estávamos à sua espera num grande Saloon, situado
na C Street. Sabíamos que eles viriam, e contávamos com um Mark agitado, mas ele estava tão
imperturbável como um lago no meio de uma montanha. Disse-nos que tinha sido
vítima de um assalto e perguntou-me se eu tinha algum dinheiro. Dei-lhe cem
dólares do seu próprio dinheiro e ele ofereceu bebidas a todos. De seguida,
mudámo-nos para o escritório do Enterprise,
onde ele ofereceu uma recompensa e Dan de Quille escreveu a notícia e a
telegrafou para outros jornais. Foi então que alguém sugeriu que Mark teria que
dar outra palestra, e que o assalto daria um excelente tema. Ele concordou de
imediato, e no dia seguinte, contratámos o Teatro Lírico Piper, e as pessoas
estavam dispostas a pagar cinco dólares cada para os bancos da primeira fila.
Seria o maior acontecimento de sempre da Virgínia, se tivesse de facto
ocorrido. Mas, depois, cometemos o erro de contar a nossa brincadeira ao Sandy
Baldwin. Também contámos ao Joe – demos-lhe o relógio e o dinheiro para ele
guardar, o que tornou tudo mais difícil para ele depois – mas foi o Sandy Baldwin
que nos levou à desgraça. Mark havia jantado com ele na noite anterior ao espectáculo,
e depois de estar bem ‘quente’ do champanhe, ele achou que seria boa ideia
contar ao Mark o que se estava realmente a passar.”
“O
Mark não partilhou da nossa opinião. Ele ficou furioso.”
Nessa
altura, o Joseph Goodman disse:
“‘Aqueles
velhacos colocaram o dinheiro, o relógio, as chaves, os lápis e todos os
pertences do Sam nas minhas mãos. Senti-me particularmente mal por ter sido
feito cúmplice do crime, especialmente porque o Sam era meu convidado, e eu
tinha sérias dúvidas acerca da sua reacção quando ele descobrisse que o assalto
não era genuíno.’”
“Senti-me
terrivelmente culpado quando ele disse:”
“Joe,
aqueles ca— dos ladrões levaram-me as chaves e eu não consigo abrir a minha
arca. Achas que podias arranjar-me uma chave que caiba na minha arca?”
“Respondi-lhe
que poderia fazê-lo durante o dia e, depois do Sam se retirar, eu peguei na sua
chave e queimei-a, para que ficasse negra. Depois, peguei numa lima e limei a
chave, para fazer com que parecesse que eu tinha experimentado a chave na
fechadura, com uma culpa constante, como um homem que tenta esconder um
homicídio. O Sam não pediu a chave nesse dia e, nessa noite, ele foi convidado
pelo juiz Baldwin para jantar. Pensei que ele estava muito silencioso e muito
solene quando regressou, mas disse apenas:”
“Vamos
jogar às cartas, Joe; não tenho sono.”
“O
Steve e dois ou três outros rapazes (que tinham participado no assalto) estavam
presentes, e não gostaram dos modos do Sam; portanto, desculparam-se e deixaram-no
a sós comigo. Jogámos durante um bom tempo; depois, ele disse:”
“‘Joe,
estas cartas estão gordurosas. Tenho um baralho novo na minha arca.
Arranjaste-me a chave que te pedi?’”
“Saquei
da chave queimada e riscada, cheio de medo e a tremer, mas ele não pareceu
notar e regressámos ao jogo de cartas. Jogámos continuamente até à uma ou duas
horas – o Sam sempre calado e eu a perguntar-me o que iria acontecer. Com o
passar do tempo, ele pousou as cartas, fitou-me e disse:”
“‘Joe,
o Sandy Baldwin contou-me acerca do assalto esta noite. Sabes, Joe, descobri
que a lei não reconhece uma chalaça e vou enviar aqueles tipos para a penitenciária.’
“Ele
proferiu aquelas palavras com uma seriedade de tal modo solene, e com tal
desejo de vingança, que eu acreditei que ele falava muito a sério.”
“Eu
sei que trabalhei arduamente durante duas horas, tentando convencê-lo a
desistir da sua decisão. Usei todos os argumentos sobre os rapazes serem os
seus amigos mais antigos; como todos eles o adoravam e de como a partida fora
só para o seu próprio bem; implorei-lhe que reconsiderasse; devolvi-lhe o
dinheiro e o relógio e coloquei-os em cima da mesa mas, durante algum tempo,
tudo parecia perdido. Eu imaginava os rapazes atrás das grades e a sensação que
isso faria na Califórnia. Quando eu estava prestes a desistir, ele disse:
“‘Bem,
Joe, por esta, deixo passar; eu perdoo-os novamente; já os perdoei tantas vezes,
mas se eu pudesse salvar o Denis McCarthy e o Steve Gillis da forca amanhã, não
o faria!’
“Na
manhã seguinte, ele cancelou a conferência e regressou à Califórnia um dia
depois, pelo caminho do lago Donner. Os rapazes vieram despedir-se dele
timidamente, mas ele não cedeu.” Quando eles se apresentaram como Beauregard,
Stonewall Jackson, etc, ele disse apenas:
“‘Sim,
e um dia, estarão todos atrás das grades. Tem havido muitos assaltos por aqui
ultimamente e é muito claro quem são os culpados.’ Eles entregaram-lhe um
embrulho com as máscaras que os assaltantes tinham usado. Ele aceitou-o num
silêncio sombrio; quando a carruagem se afastou, ele pôs a cabeça fora da
janela e, depois de muitas advertências, esboçou o seu velho sorriso e
gritou-lhes: ‘Adeus, amigos, adeus, ladrões; não vos quero mal algum.’ Depois
de tudo, a maior partida foi para com os seus algozes.”
* Traduzido de:
Mark Twain: A Biography The Personal and Literary Life of Samuel Langhorne Clemens da autoria de Albert Bigelow Paine