Com que luxúria e
transcendente eu, às vezes, passeando de noite nas ruas da cidade e fitando, de
dentro da alma, as linhas dos edifícios, as diferenças das construções, as
minuciosidades da sua arquitectura, a luz em algumas janelas, os vasos com
plantas fazendo irregularidades nas sacadas – contemplando tudo isto, dizia,
com que gozo de intuição me subia aos lábios da consciência este grito de
redenção: mas nada disto é real!
A arte é um esquivar-se a agir, ou a viver. A arte é a
expressão intelectual da emoção, distinta da vida, que é a expressão volitiva
da emoção. O que não temos, ou não ousamos, ou não conseguimos, podemos
possuí-lo em sonho, e é com esse sonho que fazemos arte. Outras vezes a emoção
é a tal ponto forte que, embora reduzida à acção, a acção, a que se reduziu,
não a satisfaz; com a emoção que sobra, que ficou inexpressa na vida, se forma
a obra de arte. Assim, há dois tipos de artista: o que exprime o que não tem e
o que exprime o que sobrou do que teve.
Feliz quem não exige da vida
mais do que ela espontaneamente lhe dá, guiando-se pelo instinto dos gatos, que
buscam o sol quando há sol, e quando não há sol o calor, onde quer que esteja.
Feliz quem abdica da sua personalidade pela imaginação, e se deleita na
contemplação das vidas alheias, vivendo, não todas as impressões, mas o
espectáculo externo de todas as impressões alheias. Feliz, por fim, esse que
abdica de tudo, e a quem, porque abdicou de tudo, nada pode ser tirado nem
diminuído. […] Nada me satisfaz, nada me consola, tudo - quer haja sido, quer não – me sacia. Não quero ter a alma e não quero abdicar dela. Desejo o que não desejo e abdico do que não tenho. Não posso ser nada nem tudo: sou a ponte de passagem entre o que não tenho e o que não quero.
Perco-me se me encontro, duvido se acho, não tenho se obtive. Como se passeasse, durmo, mas estou desperto. Como se dormisse, acordo, e não me pertenço. A vida, afinal, é, em si mesma, uma grande insónia, e há um estremunhamento lúcido em tudo quanto pensamos e fazemos.
Considerar todas as coisas que
nos sucedem como acidentes ou episódios de um romance, a que assistimos não com
a atenção senão com a vida. Só com essa atitude poderemos vencer a malícia dos
dias e os caprichos dos sucessos.
Bernardo Soares – Livro do Desassossego
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