26 de março de 2018

Hic Sunt Dracones


Quase três anos depois do primeiro episódio, o Dragon Ball Super chega ao fim – por agora, pelo menos. 

É interessante pensar que se não fosse por esse mamarracho chamado Dragon Ball Evolution, Akira Toriyama nunca teria, do alto da sua indignação autoral, escrito o filme Battle of Gods, o que faria com que o Dragon Ball Super talvez nunca existisse. 

Para quem tenha a tentação de pensar que o mangaka já não tem ideias novas nem boas, tire o cavalinho da chuva! Ninguém escreve Dragon Ball como Akira Toriyama, mesmo que nem todos concordem com as suas escolhas narrativas.

É sabido que o Dragon Ball Super não teve um começo muito auspicioso. Após o inimaginável sucesso de Resurrection F em Abril de 2015, a Toei Animation anunciou uma nova série para começar em Julho do mesmo ano... A franquia de Akira Toriyama não poderia ter tido um começo mais acidentado.  


Pós-produção

Em média, um episódio de Dragon Ball Super demora 8 semanas a produzir. A série estreou em 15 de Julho de 2015 – menos de três meses após o anúncio oficial. É humanamente impossível conseguir uma pré-produção eficiente com estas condições. Trata-se de planear uma uma série de cerca de 52 episódios por ano, tarefa que até poderia ser fácil, tendo em conta que as duas primeiras sagas eram um simples recontar dos últimos dois filmes... O rascunho de Akira Toriyama serve-lhes de régua, esquadro e compasso. Tinha tudo para ser simples... Só que o tiro saiu-lhes pela culatra. Adaptar os storyboards não foi o suficiente para salvar a série de 'afundar' logo no episódio 5.

Estas imagens correram mundo e fizeram correr terabytes de queixas de fãs zangados com a animação e o design da série.





A arte era uma miséria e a animação era tosca; parecia ter sido executada por garotos de escola primária. E tudo isto com os melhores animadores da indústria, profundamente conhecedores da franquia de Akira Toriyama... Mas nem os melhores animadores conseguem dar o seu melhor se não tiverem tempo para trabalhar. Esse foi sempre o principal problema que assombrou o Dragon Ball Super. Pensar-se-ia que, com os storyboards de duas películas, eles trabalhassem mais depressa e conseguissem atalhar caminho para as novas sagas. Infelizmente, não foi isso que aconteceu.

Whis e Beerus

O deus da destruição Beerus e o seu anjo Whis foram as melhores personagens que regressaram à série vindas dos filmes e, embora eu não tenha gostado especialmente da saga do Golden Frieza, não posso negar que foi fundamental para preparar o caminho para eventos muito importantes no futuro da história, dos quais falarei mais adiante.


A Saga do Champa

Champa e Vados

É sabido que os deuses da destruição não podem lutar entre si sem correr o risco de aniquilar universos. Quando os dois irmãos Beerus e Champa organizaram um torneio de artes marciais, tivemos a oportunidade de ver um universo paralelo. Gostei muito do conceito de universos gémeos! A saga do Champa é das mais divertidas desta série; desde o aparecimento do gato gordo Champa até à sempre cómica rivalidade com o seu irmão gémeo "trinca-espinhas". O Universo 6 é uma óptima porta de entrada para uma realidade completamente nova e, simultaneamente, estranhamente familiar. Saiya-jins comprometidos em defender a paz do universo e uma versão (aparentemente) benévola do Frieza são algumas das personagens que lhe dão vida. E a cereja no topo do bolo? Hit, o assassino contratado! Mesmo que a saga no seu todo seja mais descontraída e engraçada do que qualquer saga de torneios do Dragon Ball clássico, a história não é tão impressionante. Os combates são demasiado curtos para serem verdadeiramente épicos como aquele confronto final entre o Son Goku e o Jackie Chun. 

Na saga do Champa, há dois combates que se destacam: Vegeta vs. Cabba e Goku vs. Hit. O combate que opõe os dois Saiya-jins marca-se por uma luta entre vontades de dois guerreiros fortes. Contudo, o que os distingue é mais fascinante do que o que os une. O Vegeta é um ex-mercenário intergaláctico, enquanto o jovem Cabba é o protector dos inocentes e um defensor das causas justas do planeta Sadla. Vegeta ensina umas quantas coisas ao garoto, como a necessidade de ser um guerreiro implacável e orgulhoso em todas as ocasiões, embora eu ache que o Cabba, tendo atingido o estado de Super Saiya-jin tão depressa, significa que o seu potencial é ainda maior do que os Saiya-jins do Universo 7. Na sua familiar arrogância, Vegeta faz algo pelo seu adversário que mais ninguém se atreveria a fazer: treina-o enquanto combate contra ele. Claro que o veterano vence o combate, mas o Cabba retém a lição bem como o desejo de ultrapassar o seu mestre.

De repente, esta série tosca e cómica começava a parecer-se com o Dragon Ball da minha memória. 

Depois, veio o Goku contra o Hit. O irreverente Saiya-jin do Universo 7 inicia o combate como tantos outros que já vimos: fazendo uma vénia ao seu oponente. Hit foi surpreendido pelo gesto – um assassino contratado não estava habituado a tamanha cortesia.



Quando o nosso herói se apercebe que Hit já viveu mil anos, toma uma atitude muito pouco característica da sua personalidade – curva-se perante o ancião num gesto de profunda reverência. É um gesto muito simples, mas diz muito sobre a personalidade do Son Goku e sobretudo sobre a sua atitude em relação às artes marciais.




Tenho a certeza de que o público também ficou surpreendido em ver a personagem mais patusca da história da manga ter um gesto daqueles, mas este gesto singular e a luta que se segue são alguns dos melhores momentos de toda a série. Lembram-se quando esta série era sobre artes marciais e os lutadores aspiravam à superação dos seus limites, tornando-se mais fortes e capazes depois de cada combate? Foi aqui que senti que o Dragon Ball da minha memória estava de volta! A partir deste combate, o Dragon Ball Super ganhou novo ímpeto.



A honestidade de Goku no trato com os outros, o seu sincero desejo de se aperfeiçoar e o facto de não guardar rancor de nenhum dos seus adversários, eleva-o ao olhar dos seus mais acérrimos inimigos. Ele é o espírito desportivo encarnado. O caso do Hit é diferente, dado que ele não é propriamente inimigo do Goku, mas a sua atitude leal abre os olhos do mercenário para uma realidade totalmente nova... E ele agradece-lhe por isso.

Kazuhiko Torishima disse em entrevista: "Goku estará interessado em lutar contra adversários fortes,  por mais vis que sejam, para que possa tornar-se mais forte, mas não acaba com eles! Ele não mata ninguém. E isto porque ele adora adversários fortes! É isso que Goku tem de tão estranhamente atraente, não é? É uma personagem cheia de compaixão humana. E acho que é essa a mensagem de Dragon Ball."

Ver o Monaka ganhar o torneio com um só murro no Hit só é engraçado porque o Goku fica ainda mais impaciente e curioso por lutar contra ele.

O torneio ainda teve tempo de nos apresentar a personagem mais fofa de todo o multiverso do Dragon Ball: Zen-Oh. Akira Toriyama tem o hábito de criar personagens que aparentam ser frágeis e singelas e inbui-las de uma força descomunal. Aconteceu com muitos: desde o próprio Goku até ao Zen-Oh. Este é o rei de tudo, o derradeiro deus que supervisiona todos os 12 universos. O ser mais poderoso de toda a existência aparenta ser uma criança dos seus 3 ou 4 anos e a performance da actriz Satomi Koorogi ainda ajuda mais à fofura. 



Enquanto soberano do multiverso, Zen-Oh sente-se algo só porque todos os seus subordinados o temem. Quando Goku quer falar com ele sobre um torneio com participantes de todos os universos, é muito divertido ver o Beerus e o Champa a mijarem-se de medo pela atitude super casual do Saiya-jin ao apertar amigavelmente a mão de Zen-oh e elevá-lo no ar. 


Esta cena tem que se lhe diga. Aliás, o facto do Goku ser demasiado informal com toda a gente é uma velha piada que persiste desde os tempos do Dragon Ball clássico. Quem sabe: talvez seja um comentário social aos costumes de extrema polidez do povo japonês. Uma personagem como o Goku seria visto como alguém terrivelmente mal-educado mas, sendo ele alguém com um coração puro, os seus mestres perdoam-lhe a indiscrição. No caso do rei de tudo, não só não se preocupa com o aperto de mão amigável, como acha o Goku muito divertido! Zen-oh não está habituado a ser tratado com tanta amizade: os deuses da criação bem como os da destruição borram-se de medo quando o veem, ou quando ouvem falar dele. 


Slice of Life 

Se há coisa que o DBS sabe fazer bem são os episódios ligeiros onde se explora o dia-a-dia das personagens e os episódios de comédia. Um dos episódios mais divertidos é aquele em que um Goku ansioso luta contra o Beerus num fato de Monaka. Quando os deuses mentem, metem-se em grandes sarilhos! Para quem acha que o Goku faz figura de asno por não conseguir deslindar que o Beerus está disfarçado de Monaka, queria só dizer que na manga desenhada por Toyotaro, o Vegeta questiona-se por que motivo é que o Zamasu não trocou de corpo com o Monaka, visto que seria ele o mais forte do Universo 7. Ao contrário do animé, na manga, o Vegeta nunca descobre a patranha do deus da destruição. Este episódio é de pura comédia e brinca com a eterna ingenuidade do Goku que acredita piamente no que Beerus lhe disse sobre a força descomunal de Monaka. Foi longe de mais? Bem, tudo depende se os espectadores preferem o Dragon Ball mais cómico ou mais sério…

Outro episódio que teve uma boa resposta por parte do público foi o 43º. Sim, é o episódio em que o Goku, após ser diagnosticado com um grave distúrbio de Ki, fica em repouso e a tomar conta da sua neta, Pan.


Episódios como o crossover com o Dr. Slump, o episódio do jogo de baseball entre o Universo 6 e o Universo 7 e os episódios com o Gohan como actor num filme sobre o Great Saiyaman são hilariantes! Ah, já me esquecia… a mini-saga da cópia do Vegeta serviu para um único objectivo…

Sim, vivemos para ver este dia glorioso!




A Saga do Trunks do Futuro 

Goku contra Goku

De longe, a saga mais sombria de toda a franquia Dragon Ball é a saga do Goku Black (Trunks do Futuro; Zamasu, como preferirem). Esta saga é capaz de contrapor, sozinha, todo o humor fácil que preenche o resto da série. O tom soturno que atravessa toda a saga não parece pertencer a uma série como Dragon Ball. Sim, esta série tem inúmeros acontecimentos dramáticos, mas há sempre um elemento de esperança e de optimismo. O mundo habitado pelo Trunks do Futuro é um mundo destruído, sem bolas do dragão ou feijões mágicos que resolvam os problemas mais sérios. Todas as nossas personagens estão mortas e o planeta é assolado por um terrível vilão que se auto-intitula 'Son Goku'. 

Apesar de esta ser a saga mais negra (viram o trocadilho?) de todo o Dragon Ball, eu acho que é a história mais interessante de toda a franquia. Sim, mesmo com todos os problemas narrativos que advêm das constantes viagens no tempo e apesar daquele final indigno... Bem, mesmo que ninguém a considere a melhor saga, pelo menos tem o melhor vilão que o Dragon Ball já viu. 

Zamasu é o algoz divino, o derradeiro misantropo que está pronto e disposto a criar um mundo melhor, livre de todos os mortais pecadores que nele ainda habitam. É um conceito radical. Para o Dragon Ball, pelo menos!

Zamasu, o Deus da Des… er… o aspirante a Deus Supremo do Universo 10

O Zamasu é um erro de casting: claramente ele deveria ter sido escalado para Deus da Destruição. Enquanto um lutador prodigioso do Universo 10, Zamasu foi escolhido pelo Deus Supremo Gowasu como seu aprendiz para ocupar o cargo de Deus da Criação no futuro. Em termos de apreciação de carácter, Gowasu é quase tão ingénuo quanto Goku. Zamasu foi escolhido pelo seu coração puro e pelo seu aguçado sentido de justiça. O que ele foi incapaz de intuir foi a desconfiança que o seu aprendiz nutria pelos mortais. O seu encontro com Son Goku só tornou tudo pior – algo que também é invulgar nesta série. Estamos habituados a ver o Goku mudar a perspectiva dos seus inimigos e a fazer deles aliados. Apesar da sua atitude descontraída e do seu perene desportivismo, Goku só conseguiu aumentar a desconfiança de Zamasu em relação aos mortais. O que antes era só uma leve sensação de que não valia a pena guiar seres estúpidos e belicosos que repetiam eternamente os mesmos erros, transformou-se em desprezo e ódio por os mortais conseguirem atingir um poder equiparável ao dos deuses.

O aprendiz era fortemente crítico da atitude passiva dos Deuses Supremos que se recusam a interferir nas vidas que vigiam com tanto zelo. Em pouco tempo, Zamasu concluiu que não podia fazer nada para impedir o mal que era tão danoso para a existência como os mortais que espalham o caos e a violência pelo universo. O seu sentido de justiça impeliu-o a assassinar o seu mentor, como forma de castigo pela sua imperdoável passividade. Roubou-lhe o anel do tempo, tornou-se Deus Supremo e, aproveitando-se da ligação divina, viajou pelos doze Universos e assassinou todos os Deuses Supremos, certo que iria liquidar os Deuses da Destruição e fazer com que os anjos ficassem inertes.

Goku Black

A partir daí, Zamasu ficou livre para aplicar a sua própria justiça divina, massacrando todos os mortais de todos os planetas, preparando o terreno para um multiverso utópico. Até chegar à linha temporal do Trunks do Futuro...

Paralelamente a isso, reuniu as Super Dragon Balls e trocou de corpo com o seu arqui-inimigo, aproveitando para o massacrar diante da sua família...

Zamasu – em todas as suas encarnações – é um vilão indecentemente calmo e competente. Akira Toriyama habituou-nos a vilões ridiculamente sádicos, mas incapazes de levarem os planos maléficos até ao fim. Vendo bem, o Piccolo Daimao, o Vegeta, o Frieza e o Majin Buu juntos não causaram tantas mortes como o Zamasu e o Goku Black. Isto é impressionante! É irónico que este justiceiro divino se transforme na criatura que mais odeia; uma espécie de dissonância cognitiva. Embora ele acredite ser o único deus, funde-se com a sua versão imortal, com o corpo do seu arqui-inimigo, como forma de expiação pelos pecados cometidos pelos Deuses Supremos e por todos os mortais pecadores. Chegou uma altura em que pensei que os nossos heróis nunca o conseguiriam vencer. Afinal, não há transformação nenhuma que pese mais do que um Zamasu imortal. Temi que todo o trabalho de Akira Toriyama com esta intrincada saga não chegasse a bom porto, mas ele nunca tinha deixado uma ponta por atar antes... Bem, há sempre uma primeira vez, não é?

Recapitulemos: a acção inicial mostra a apresentação do Goku Black e o regresso do Trunks ao passado. O conflito entre o Zamasu e o Goku é lógico dada a instabilidade mental do aprendiz de Deus Supremo. Um combate amigável entre os dois (com o Goku a humilhar o aprendiz) é a reviravolta na premissa que faz com o Zamasu se revolte e comece a pensar em eliminar todos os mortais. Quando o Zamasu e o Goku Black dão um sermão ao Trunks do futuro e o acusam de ser o responsável pela chacina dos mortais devido ao uso abusivo da máquina do tempo, o rapaz corta o aprendiz de Deus Supremo ao meio, com um discurso fabuloso sobre a resiliência típica dos seres humanos. E o final mais deprimente de toda a série dá-se quando o Zen-Oh apaga a linha temporal do Trunks do futuro. É deprimente porque, apesar de todos os seus imensos esforços, Trunks e os seus companheiros são humilhados e derrotados no derradeiro combate contra o Zamasu e quem tem que 'arrumar a casa' é o Zen-Oh. É o final mais anti-climáctico de sempre...! Mas parece condizer com o espírito da saga. Apesar de tudo, isto ainda é o Dragon Ball. O que prova a minha teoria são as duas músicas que serviam de outro para esta saga. O Goku Black mata a Bulma e a Mai (aparentemente) e ameaça matar o Trunks, o episódio acaba e ouve-se o "Forever Dreaming" da banda Czecho No Republic. O Goku Black chacina o nosso herói e toda a sua família e a música do fim é "Yokayoka Dance" da banda Batten Showjo Tai. Se alguém ainda tivesse dúvidas, as músicas confirmam que ainda estamos a ver Dragon Ball – essa maravilhosa montanha-russa de emoções! Além de tudo, como a série é transmitida na Fuji TV às nove da manhã de domingo, os criadores não estão autorizados a mostrar sangue. Quando as personagens sofrem ferimentos físicos, os animadores desenham muitos tracinhos que simbolizam múltiplos ferimentos.

Tendo visto o Dragon Ball durante todos estes anos, esta censura dos dias que correm incomoda-me um pouco... Mas pronto, entendo que a Toei direcione esta série para os filhos dos fãs das séries anteriores.

Outra coisa que me incomodou nesta saga – e a muitos outros fãs da série – é a caracterização do Goku. Bem-disposto, optimista, ingénuo e perseverante são algumas características principais do nosso protagonista. O seu temperamento foi determinado pelo seu criador, mas nem todos os argumentistas conseguem encontrar um equilíbrio destas características. Reconheço que não é fácil para muitos conseguirem distinguir entre a sua faceta pateta e a sua faceta intimidadora mas, no caso da sua caracterização na saga do Zamasu, penso que se trata de um problema de horário. Às 9h da manhã, os criadores da série pretendem dar aos seus telespectadores mais gargalhadas e menos violência. Devo dizer que, nesta saga, o uso do humor fácil é despropositado porque: 1) o vilão é demasiado sério para piadas e 2) porque as piadas são feitas às custas do Goku. As maiores ofensas estão no episódio 58. Entre o Goku esquecer-se dos feijões mágicos na máquina do tempo e enjoar durante a viagem, ou sugerir que a forma que os guerreiros têm de se tornarem imortais é encherem o bandulho de feijões mágicos, a caracterização do protagonista é demasiado pateta. Ainda me lembro daquele episódio em que o jovem Goku vai à cidade pela primeira vez para encontrar a Bulma e ele não era tão pateta nessa altura. Os argumentistas parecem querer arrancar gargalhadas aos telespectadores... mas sem grande competência. A ingenuidade do Goku não pode durar para sempre, sendo ele um adulto vivido, e era um dos elementos mais encantadores da sua personalidade. Ele só teve um momento mais sério quando o Zamasu lhe contou como matou a sua mulher e o filho mais novo. Nesse momento, tivemos o nosso Goku de volta. Mas só nesse momento. Apesar da seriedade que se apoderou da saga nos episódios seguintes, os acontecimentos desenrolaram-se de forma manifestamente confusa. A presença de anéis do tempo e de diferentes linhas temporais devido às constantes viagens é de deixar a cabeça de qualquer um num molho de brócolos. Para além disso, em termos narrativos, esta saga é um verdadeiro molho de brócolos! Um dos motivos pelo qual eu não gosto da saga do Cell é o total can trazido pelas diferentes linhas temporais. A saga do Zamasu é pior que a do Cell em termos de viagens no tempo e linhas temporais. Como é possível a mesma saga ter o melhor vilão de toda a história do Dragon Ball e o final mais decepcionante? A trajectória do aprendiz de Deus Supremo é emocionante – como um coração tão puro se pode corromper tão definitivamente e transformar-se num ser irreconhecível. Claro que após se ter tornado imortal, não havia volta a dar sem ser chamar o único ser no multiverso capaz de o destruir! Apesar de achar que o final foi o único possível, a trajectória do Trunks não é minimamente satisfatória, tendo em conta que ele não tem nenhuma catarse. Nem ele, nem ninguém. E nem nós, claro!


A resolução desta história foi tudo menos satisfatória; não pela lógica da narrativa, mas pelo facto de que ninguém queria que o sacrifício do Trunks fosse em vão. E muita gente sentiu que foi isso que aconteceu. O Trunks não passou por uma transformação psicológica que fizesse dele uma pessoa melhor; a única coisa que ele aprendeu foi que quando ele não conseguir resolver um problema sozinho, só precisa de chamar os deuses e eles resolverão o problema por ele. Quando Zen-Oh apagou a sua linha temporal, aniquilou tudo aquilo que Trunks conhecia. Esse problema não tem solução porque, segundo as regras do próprio Dragon Ball Super, a nova linha temporal criada por Whis e Beerus é habitada por versões alternativas da sua mãe e dos seus amigos, ao invés das pessoas que ele perdeu na batalha com o Zamasu. Sim, as viagens no tempo são incompreensíveis. 



A Saga do Torneio do Poder 



O Torneio do Poder é talvez a saga mais estranha que o Dragon Ball alguma vez criou. Não é uma saga comum e não é um torneio que já tenhamos visto nesta série. É um battle royal entre os oito universos com o poder de combate mais baixo da escala, ao invés de um torneio onde, combate a combate, se elegem os melhores artistas marciais para os oitavos de final. 

A saga está dividida em três actos: o torneio de exibição do Zen-oh; o arco da recruta dos vários participantes e o Torneio do Poder propriamente dito. Este torneio tem início bem atrás, na saga do Champa, quando o Zen-oh promete organizar um torneio com guerreiros de todos os universos. No início, pensei: muito bem, isto é que é continuidade! No entanto, a saga não tem uma “espinha dorsal” que a sustente. Quando o Grande Sacerdote organizou o Torneio de Exibição, houve uma tentativa de culpar o Son Goku pela possível destruição dos universos, mas foi fogo de vista. Os argumentistas nunca desenvolveram a ideia de que o Goku seria o “vilão” da história. Teria sido uma ideia interessante ver até que ponto é que a obsessão do nosso protagonista por um bom combate se viraria contra ele e todos os seres do multiverso; ver até que ponto é que o Goku não precisa seriamente de rever a sua posição... O problema é quando os argumentistas dão “um tiro no pé” e desvendam o real motivo para a possível catástrofe: Zen-oh decidira que os universos perdedores seriam eliminados. Para efeitos de narrativa, não interessa como é que a história iria terminar. Há muitas pessoas que pensam que o Dragon Ball não segue as suas próprias regras... mas o Son Goku é nitidamente uma personagem estática – são os outros que mudam por causa dele e não o contrário. No final, o status quo prevaleceu. Esse status quo é confirmado por todos os participantes do Universo 7 (até pelo Deus da Destruição) no final da série. Mas estou a antecipar-me... 

A saga começa com um Goku “enferrujado” que relembra ao Zen-oh a sua promessa de organizar um torneio de artes marciais que reúna participantes de todos os universos. No primeiro acto, o Zen-oh prepara um torneio de exibição entre o universo 7 e o universo 9. O torneio corre bem para a equipa do Universo 7, apesar da insistência dos guerreiros do universo 9 em culpar o Goku pelo genocídio prometido. Vendo só esta parte do arco, seria de imaginar que estes combates viriam a ser referenciados mais tarde, mas tal não aconteceu. Os combates do torneio de exibição pouco têm que ver com os combates subsequentes.

No segundo acto, há inúmeros episódios dedicados à recruta dos vários participantes para o evento principal. Todos eles são muito interessantes, tanto pela forma de recrutamento dos participantes do universo 7, como dos restantes, pois vemos uma expansão dos outros universos participantes e dos "jogos de bastidores" entre os participantes e os deuses de cada universo.

Há um momento que tenho de citar, porque todos os fãs da franquia acabaram por reconhecer este momento como o derradeiro piscar de olhos a todos oa fãs de Dragon Ball. É um pequeno momento, considerado como fan service, mas é fan service no seu melhor. Enquanto espera que Frieza chegue do  Inferno, Goku recria o combate que teve com o seu avô.



O terceiro acto é inteiramente dedicado ao torneio do Zen-oh.



O torneio de poder foi uma excelente forma de remodelar a série. Nova animação, nova banda sonora, novo tema de abertura – foi uma mudança de estilo brusca, mas bem-vinda que ajudou o Dragon Ball a recuperar alguma da sua anterior glória.

São 48 minutos de luta pura e dura! Muitas pessoas aborrecem-se com esta ideia, muitos fãs preferem uma boa luta estratégica (como os combates do torneio mundial de artes marciais), mas não ao nível de uma grande batalha pela sobrevivência dos universos. Admito: pode ser bastante confuso em alguns momentos e, se for assistido semanalmente, ficamos com a sensação de que a história se está a arrastar, mas se virmos a série de fio a pavio, o arco narrativo faz mais sentido. O tema principal deste arco é 'confiança'. O Gohan foi nomeado capitão da equipa pelo Goku, esperando que os seus membros se reunissem em torno dele. Tratava-se de confiar no capitão para os conduzir à vitória. Gohan esperava que todos permanecessem juntos e se protegessem uns aos outros até o fim. Claro que o Son Goku e o Vegeta dispersaram assim que o grande sacerdote declarou o combate aberto. Toda a gente sabe que os Saiyajins só lutam um contra um, nunca em equipa.

Gostei particularmente da batalha entre o Krillin, a C-18 contra o Shosa do Universo 4: um combate com uma excelente estratégia muito bem articulada e executada pelo casal. Especialmente engraçado foi o breve combate entre Krillin e o Majora do Universo 4. Parti o coco a rir quando aquele sapato chulezento incapacitou o Majora e o deixou suficientemente vulnerável para o Krillin o derrotar com um Kamehameha. Trouxe-me à memória o combate entre o Krillin e o infame Bacterian. Verdadeiramente hilariante e um grande momento nostálgico!

Os combates seguintes não são particularmente apelativos para mim, mas tudo começa a ficar interessante quando a Caulifla e a Kale lutam contra o Goku e aprendem algumas técnicas com ele. Sim, é um torneio onde é preciso empurrar os oponentes para fora dos limites mas, para o Goku, é apenas um glorioso torneio de artes marciais. E ele diverte-se realmente com os seus adversários e em ultrapassar os seus limites! 


Os combates entre os episódios 103 e 108 são muito diversos e alguns são muito engraçados. O combate entre o Vegeta e a Ribrianne é divertido, mas o episódio 105 é especial para todos os fãs. Desde o Dragon Ball clássico que o Muten Roshi não era uma personagem com peso significativo na história, mas o episódio 105 foi o seu ponto alto que nos lembrou a todos o motivo pelo qual esta franquia é tão incrível! É brilhante a forma como este episódio e esta personagem foram tratados. Nunca soubemos que tínhamos um apego emocional tão intenso ao Muten Roshi até este episódio. O seu combate contra o Ganos do Universo 4 foi épico, especialmente devido às suas palavras enquanto disparava o seu super forte Kamehameha – um maravilhoso e emocionante piscar de olhos aos fãs do Dragon Ball clássico. Tudo o que aconteceu até o final do episódio serviu para nos aquecer o coração e para fazer de Muten Roshi um participante valioso da equipa do Universo 7. Até o próprio Beerus mostrou o seu respeito pelo velho mestre de artes marciais.

Mas o “menu principal” é obviamente o combate entre Goku e Jiren. O primeiro confronto acontece no episódio 109; Goku tenta todas as técnicas à sua disposição para enfrentar Jiren, sem sucesso. Ele atravessa todas as fases de super-sayajin sem conseguir fazer com que Jiren se mova... Goku pede energia aos seus companheiros, e todos (incluindo o Frieza, que ri e nota que o ataque lhe traz más memórias) ajudam. Menos o Vegeta, que ainda é beligerante quando se trata de dar energia ao Goku. Goku atira a Genki Dama ao Jiren. A força da energia de ambos os lados faz com que a Genki Dama crie ondas de choque por todo o ringue e se abra um buraco. Goku luta com todas as suas forças, mas sucumbe à energia da Genki Dama e é engolido por sua imensa explosão que abala o Mundo do Vazio. Este foi o momento que fez a Internet 'vir abaixo'. O episódio especial de uma hora causou um apagão na rede. Ambos Zen-ohs olham um para o outro, hesitantes, e preparam-se para eliminar Goku dos seus GodPads. Beerus grita para Goku, incrédulo com o seu desaparecimento. Nesse instante, uma onda de choque sacode todo o ringue e todos sentem um fluxo selvagem de poder; os membros da equipa do Universo 7 percebem a origem do estremecimento antes que um colossal pilar de luz apareça, chamando a atenção de todos os presentes. Numa das cenas mais belas e mais bem executadas de todo a franquia, Son Goku emerge na sua forma recém-adquirida  o Ultra-Instinto. Não estávamos lá para a primeira transformação do Goku em super Saiyajin; não estávamos lá para a transformação do Gohan em super Saiyajin 2, chegámos tarde demais para esses eventos monumentais. Mas estávamos todos lá para a transformação do Ultra-Instinto do Goku. O mundo inteiro estava a ver e a Internet foi-se abaixo. O Ultra-Instinto foi preconizado na saga do Golden Frieza. Aliás, esta técnica já havia sido preconizada no Dragon Ball clássico, quando o Goku treinou com o mestre felino da torre sagrada, quando treinou com o Popo... Estes mestres já haviam sugerido ao Goku que ele tem que deixar o seu corpo agir sem interferência de pensamentos ou emoções. Isto faz com que o Ultra-Instinto seja o pay-off mais longo que Dragon Ball já fez. Lembrem-se do regresso da Chi-Chi e o facto de ela relembrar ao Goku a sua promessa de casar com ela foi um dos maiores pay-offs de sempre, mas Ultra-Instinto é definitivamente o mais longo. Muitos fãs pensam que o Ultra-Instinto foi preconizado na saga do Golden Frieza, pelo Whis, mas há antecedentes. 



Desde o episódio 110 até ao episódio 129, assistimos a uma autêntica montanha-russa de emoções com as nossas personagens favoritas a lutar pela sobrevivência, combatendo ferozmente contra membros dos outros universos. Um dos momentos mais memoráveis é o derradeiro Kamehameha contra a Kefla. Aquilo é que foi reinventar um clássico! Quando pensávamos que o Dragon Ball já não nos conseguia surpreender, vemos isto a acontecer no ecrã...


E o melhor ainda estava por vir! E não, não estou a falar sobre a derradeira derrota do Vegeta contra o Jiren ou sobre o passado aborrecido de Jiren. Refiro-me à confiança que Vegeta deposita no Goku (tendo em atenção o historial destas duas personagens, este momento foi muito significativo e um excelente eco de um momento semelhante na saga do Frieza) e à transformação mais bem conseguida de todos os tempos! O aperfeiçoamento do Ultra-Instinto, que esteve sempre a borbulhar à superfície, a impressionante música, a arte e a animação da derradeira batalha do Goku (mais o Frieza e o C-17) contra o Jiren... Tudo é perfeito! Para uma série que começou com dois pés esquerdos e sofreu inúmeras críticas aquando das suas primeiras três sagas, foi incrivelmente catártico ver estes três últimos episódios. Ver o Son Goku conseguir aperfeiçoar o seu Ultra-Instinto e ver todos os deuses da destruição levantarem-se, em respeito ao mortal do qual haviam zombado no início, fez-me aplaudir de pé. Mais: a personagem que eu achava mais aborrecida e a equipa de sonho que eu nem sabia que queria tornar-se realidade e foi imensamente gratificante! Eu nunca dei 2 tostões pelo regresso do Frieza. Ele nunca foi meu vilão favorito e o seu regresso do inferno fez-me revirar os olhos. Grande, grande erro o meu! 


A participação do Frieza no torneio do poder foi um golpe de génio! A minha coisa favorita na saga do Majin Buu sempre foi o facto de que os nossos protagonistas tiveram que trabalhar juntos para derrotar o vilão. Nunca pensei que veria algo assim novamente, muito menos algo melhor! Ver o C-17, o Son Goku e o Frieza lutarem juntos para derrotar o Jiren foi alucinante! O desejo do C-17 foi justo e consigo apostar que também teria sido o desejo do Son Goku. A segunda parte do episódio final realmente tocou profundamente no coração dos fãs, mas assistir ao Dragon Ball Super com o resto do mundo tornou esta experiência realmente única e insubstituível. Podemos finalmente desfrutar da glória de ver todos os  lutadores contribuirem com algo útil no torneio. Quando foi a última vez que isso aconteceu em Dragon Ball?

A maior experiência, porém, foi a dos fãs mexicanos que, em uma carta apaixonada do alcaide de Juárez à Toei Animation, pediu ao estúdio japonês que permitisse que a série fosse projectada num fórum público. Os dois últimos episódios quase causaram um incidente diplomático entre o México e o Japão, mas prevaleceu a vontade dos fãs de várias localidades por essa América Latina fora, que ignoraram os avisos da Toei Animation e assistiram aos últimos dois episódios em locais públicos  eventos amplamente difundidos nas redes sociais. Os vídeos estão no YouTube para imortalizar o momento. Assistir a todas aquelas pessoas a verem o último episódio é uma sensação inefável!

Akira Toriyama criou um clássico moderno. Com alguns traços de sua caneta (em relação ao design das personagens e ao esboço do enredo), a Toei Animation e Toyotaro criaram um óptimo trabalho para o séc. XXI e uma forma brilhante de manter o Dragon Ball vivo nas próximas décadas. O Dragon Ball Super teve um começo muito difícil  com vários problemas a nível da produção, mas terminou muito bem, para gáudio dos fãs, e o futuro da franquia está assegurado. O animé encontra-se em hiato, mas a manga continua e tenho a certeza que em breve teremos mais uma série para acompanhar nos ecrãs.