3 de outubro de 2015

A Heart Made Fullmetal

   No universo infinito das mangas japonesas, há duas obras que vale a pena conhecer como a palma da mão: Dragon Ball (a obra-prima de Akira Toriyama) e Fullmetal Alchemist (a obra-prima de Hiromu Arakawa).


Fullmetal Alchemist (2001-2010)

   Fullmetal Alchemist é uma história emocionante; a manga ideal para quem não lê mangas e o animé ideal para quem não vê animés!

   Claro que há muitas outras mangas por esse Japão fora: outras mais intrinsicamente japonesas, até. Mas Fullmetal Alchemist tem características universais que a tornaram apelativo em todos as terras por onde passou. E foram muitas! Basta dar uma vista de olhos por qualquer lista de mangas (ou animés) mais populares de todos os tempos para vermos o Fullmetal Alchemist geralmente no top 5. Hiromu Arakawa criou uma obra-prima de intensa aventura e inacabável fantasia, amada pela crítica e pelo público leitor; uma obra que apela aos sentimentos de pessoas das mais variadas origens.


   Hiromu Arakawa é o pseudónimo de Hiromi Arakawa. Tal como J. K. Rowling, a mangaka japonesa mascarou ligeiramente a sua identidade para impedir que a sua obra fosse ostracizada pelo facto de uma mulher ter escrito e ilustrado uma obra direccionada para rapazes adolescentes (Shōnen).

   Uma das razões pelas quais esta obra é tão popular é o facto da autora ter feito muito bem o seu “trabalho de casa”. As suas pesquisas em temas como: viver com deficiências físicas, a guerra, genocídio, stress pós-traumático e a ciência da alquimia conferem à sua série um toque extra de dedicação e profissionalismo. 




Sinopse

   Os irmãos Elric estudam alquimia desde besnicos. Os dois, o temperamental Edward e o pacato Alphonse, tornam-se vítimas da sua própria experiência quando tentam ressuscitar a mãe que perderam para uma doença misteriosa. O preço que pagam por arriscarem uma técnica proibida na alquimia é bastante elevado para duas crianças e deixa-os estropiados. Edward perde a perna esquerda e Alphonse perde todo o seu corpo. Desesperado por reaver a única família que lhe resta, Edward sacrifica o braço direito para fixar a alma do irmão numa armadura. Depois de salvos pela família adoptiva, Pinako e Winry Rockbell, o jovem Edward foi equipado com próteses de automail – tecnologia de ponta na nação de Amestris. Anos depois, os dois irmãos percorrem o país numa tentativa de recuperarem os seus corpos e, no caminho, vão desenterrando vários mistérios que ameaçam a sua pátria. 




Temas

   Entre as muitas questões filosóficas que Fullmetal Alchemist levanta, a mais importante é o valor da alma humana. A manga pode ser considerada uma obra de formação, um Bildungsroman gráfico. Aborda temas extraordinariamente complexos de forma estupenda. Alguns podem considerar que é um tratamento simplista mas, tendo em conta o público-alvo da manga, penso que a autora tratou destes temas com luvas de pelica. 




 O Valor de uma Alma

   A alquimia é a ciência da compreenção, desconstrução e reconstrução da matéria. Um dos motivos mais importantes da obra é o conceito de ‘troca equivalente’. Não se pode criar algo a partir do nada. A ‘troca equivalente’ é a lei fundamental da alquimia que determina que a criação de um objecto está dependente da destruição de outro objecto com as mesmas propriedades atómicas, obedecendo à lógica de que nada se perde, tudo se transforma.

   O símbolo mais completo deste conceito, contudo, é a pedra filosofal – esse poderosíssimo material que, quando usado, permite ignorar a lei da ‘troca equivalente’. Bem... não exactamente ignorar, visto que a pedra filosofal é criada a partir de vários sacrifícios humanos. Quanto valerá, então, uma alma humana para servir de combustível a tão cobiçado objecto?

   Em Fullmetal Alchemist, várias personagens ficaram com as suas almas fixadas em armaduras, incluindo o jovem Alphonse Elric. Outros são prisioneiros, alvos de experiências pelo exército. Apesar de serem vilões e de lutarem contra o Edward, o rapaz recusa-se a matá-los por ainda os considerar humanos.

   A existência do jovem Alphonse Elric é constantemente posta à prova durante a história. A sua alma é fixada numa armadura durante o grotesco ritual da transmutação humana, quando o garoto tem apenas dez anos, e aí ele fica durante os quatro anos seguintes. Durante todo esse tempo, ele é incapaz de sentir o calor de outro corpo contra o seu; incapaz de desfrutar de uma boa refeição e, sobretudo, incapaz de usufruir de uma noite de sono reparador. Qualquer outro ser humano teria caído morto se fosse forçado a manter-se acordado durante tanto tempo. Alphonse vê-se na situação impossível de passar pela vida sem poder experimentá-la, algo que o faz questionar-se se ele é ou alguma vez foi humano, e se as suas memórias são prova de que ele realmente existe, ou se não passa de um ser artificial que o irmão criou. A alma do Alphonse, presa naquela armadura, faz-nos questionar o que é que faz de nós verdadeiramente humanos.     




 Ciência vs. Fé

   Muitas personagens de Fullmetal Alchemist praticam alquimia, uma ciência exacta neste universo. No primeiro capítulo da manga, os irmãos Elric desmascaram um sacerdote do culto de Leto, que usa uma pedra filosofal para fazer ‘milagres’ e assim manipular os habitantes de Lior a sacrificarem-se por ele e pela sua religião. Mas é Rose, uma das seguidoras do falso profeta que protagoniza a cena mais marcante deste capítulo. A sua fé inabalável em Deus e no homem que prometeu ressuscitar o seu namorado faz com que ela ameace os nossos protagonistas para proteger o falso sacerdote. Edward escarnece da sua fé, garante-lhe que Deus não existe, e que a ressurreição dos mortos é impossível. Apesar da religião ter sofrido uma pesada derrota às mãos da ciência, há outros capítulos em que a ciência mostra o seu lado mais negro. 

   Capítulos depois do episódio de Lior, ficamos a saber que os alquimistas do Estado (apelidados de cães do exército) são vistos como trunfos na guerra com o povo de Ishval. Este povo profundamente religioso vê a prática da alquimia como um absoluto pecado contra o seu Deus, Ishvala. Para eles, só Deus tem o poder de criar. A tensão entre o povo de Ishval e o povo de Amestris, onde se passa a acção, conduz a uma terrível guerra de extermínio. Os Ishvalitas são chacinados com a ajuda dos alquimistas do Estado, usados como armas humanas.

   Os soldados ciclopes dos últimos capítulos (criados pelo exército e movidos por pedras filosofais) são o exemplo acabado do que cientistas ávidos de conhecimento e poder, com escassez de ética, são capazes de criar quando têm rédea solta. 






 O Ciclo de Vingança

   No capítulo 5, Alphonse impede o irmão de se vingar e matar um alquimista do Estado (Shou Tucker) pelo seu execrável crime. Esse gesto tem repercussões mais tarde quando o Edward impede a sua amiga Winry de exercer a sua própria vingança. De novo, este gesto tem repercussões quando o acto de misericórdia de Winry faz com que Scar desista da sua própria vingança contra os alquimistas do Estado. 

   A vingança é um produto resultante dos destroços de guerra. A incessante dança da morte, como lhe chamam os poetas, é de longe o maior gerador de ódio e desejo de vingança de todos os tempos.  Quem semeia ódio no seu caminho não pode esperar colher nada que não mais ódio. Scar é uma das inúmeras vítimas do genocídio levado a cabo pelo exército de Amestris em Ishvala. Não há nada mais justificável para ele do que vingar a chacina dos seus conterrâneos, assassinando todos os alquimistas do Estado… mesmo que a arma seja a que o seu Deus mais abomina – a alquimia. Scar vive a vingar a morte dos seus familiares e dos outros membros do seu povo, perseguindo e assassinando todos os alquimistas nacionais – incluindo aqueles que nunca se envolveram no conflito de Ishvala. Só quando é confrontado com a filha dos dois médicos que lhe salvaram a vida (e que ele matou durante um surto psicótico) é que Scar começa a questionar a validade das suas crenças. 

   O coronel Roy Mustang vive grande parte da história em busca do assassino do seu melhor amigo, deixando-se cegar pelo seu desejo de vingança. Os seus amigos mais próximos, e os subordinados que o vêem como um pai, temem pela sua sanidade mental. Mustang estava tão ciente do perigo de ser engolido pela sede de vingança que ordenou à Tenente Hawkeye que o matasse se ele saísse da ‘linha’ e cometesse algum acto que fosse contra os seus princípios. 






 Preconceito e Discriminação 

   Qual é a fonte de todos os preconceitos?

   Os seres humanos têm tendência a generalizar tudo. Num mundo em que as decisões se tomam numa fracção de segundo, o cérebro humano é alimentado por arquétipos, generalizações e pelo medo do desconhecido. Estas são as únicas condições para que os preconceitos e a discriminação se disseminem. Fullmetal Alchemist explora o ciclo vicioso de preconceito e discriminação entre os habitantes de Amestris e da região anexada de Ishval. Já li alguns comentários na rede que acusam o protagonista de racismo. Num momento na manga em que Edward Elric conversa com o Major Miles, um refugiado de Ishval… 


   O rapaz diz: “Quando só se pensa na etnia, o confronto é inevitável… mas se lidarmos uns com os outros como indivíduos, torna-se possível tratarmo-nos como iguais.”

   Para definir a cena em questão, o Major Miles é 1/8 Ishvalita da parte do avô, mas é igualzinho a um Ishvalita “puro”. Edward Elric, nascido e criado em Amestris, é 1/2 Amestris e 1/2 Xerxes. Esta manga é ironicamente multicultural – embora o preconceito e a discriminação ainda sejam comuns entre algumas personagens.

   Não há quaisquer resquícios de racismo nesta afirmação. Não há sequer espaço para imaginar que isso possa ser possível, apesar dos tempos em que vivemos. Normalmente, quem pensa assim, também acha que o autor d’ As Aventuras de Huckleberry Finn é um “monstro racista”.

 Para o geneticista italiano, Luigi Cavalli-Sforza, não existem “raças” diferentes no que respeita a seres humanos. Ao nível do ADN, as diferenças entre os indivíduos são mínimas. Segundo ele, essas pequenas diferenças desenvolvem-se a partir de uma selecção natural para lidar com o ambiente em que vivem. 

   Nesta lógica, como é que alguém pode reivindicar “ver raça”? As pessoas que alegam querer “lidar com os outros enquanto indivíduos” estão a tentar viver uma vida livre dessas visões limitadoras do preconceito e da intolerância.

   Escolher julgar uma pessoa com base no seu carácter, ao invés da cor da sua pele, é a concretização do sonho de Martin Luther King! Não apagaria o passado, nem o sofrimento das inúmeras vítimas, mas iniciaria uma sociedade totalmente nova. O único Ishvalita que Edward conhece até aqui é desmedidamente cruel e violento. Quando ele conhece o Major Miles, a memória do Scar perturba-lhe o espírito. Apesar do trauma dos confrontos com o Ishvalita, o Major Miles revela-se o oposto de Scar e Edward trata-o com respeito e pede-lhe desculpa pela sua atitude. É assim que começa a discriminação (quando se julga o todo pela parte), e é assim que termina (julgando cada pessoa com base nas suas próprias ações), independentemente do local de origem.  

   Hiromu Arakawa explica bem, e em poucas linhas, como se resolve este gigante problema. Enquanto as pessoas abraçarem ardentemente as suas bandeiras identitárias, não haverá no mundo nada mais do que confronto, preconceito e discriminação. Tratar todos os seres humanos como iguais e uni-los em causas comuns é a única forma de rebentar a inabalável corrente do ódio.






 O Conceito de Família 

   Fullmetal Alchemist está repleta de todos os tipos de famílias. A que dá origem a toda a acção é a família Elric – dois garotos abandonados pelo pai, que ficaram órfãos de mãe devido a uma doença misteriosa. As cenas entre Trisha Elric e os dois filhos são curtas, mas idílicas. A tentativa falhada de resuscitar a mãe pelo tabu da transmutação humana só deixou os dois irmãos juntos por um fio. Por ironia do destino (ditado pela autora, claro!), este trágico acontecimento foi o catalisador para um curioso fenómeno de “expansão familiar”. Primeiro, foram adoptados pela avó Rockbell e a sua neta Winry – elas próprias uma família fraturada pela morte dos pais da menina. De seguida, os dois irmãos tornaram-se alunos de Izumi Curtis, e com ela aprenderam artes marciais e a ciência da alquimia. Izumi tornou-se uma mãe para os dois órfãos. Mais tarde, eles foram acolhidos por membros do exército como o Major Armstrong, o Coronel Mustang e a Tenente Hawkeye. Com o passar do tempo e o intensificar das aventuras, a “família” vai crescendo e incluindo Ishvalitas, quimeras e até humúnculos como o Greed. A relação entre os aliados torna-se mais fácil com o passar do tempo e os laços de fraternidade estreitam-se. A única relação permanentemente tensa é a relação de Edward com o seu pai, Van Hohenheim. O progenitor teve uma boa razão para deixar a mulher e os filhos para trás, mas isso não significa que o seu primogénito o tenha perdoado. Apesar de tudo, Hohenheim e os dois filhos combatem o vilão principal juntos.

   Há ainda outras famílias: o Dr. Knox, um cirurgião, que passou grande parte da sua carreira a dissecar cadáveres durante a Guerra de Ishval, afastou-se da sua família por motivos de stress pós-traumático. Mesmo assim, a sua mulher e o seu filho visitam-no e querem estar com ele.

   Os guardiões da fortaleza de Briggs são mais unidos do que muitas famílias que eu conheço. Nas montanhas do norte, onde impera a lei do mais forte, os soldados de Briggs trabalham em conjunto, sob a mão de ferro da Major General Olivier Mira Armstrong. No entanto, os “ursos de Briggs” são perfeitamente capazes de sobreviver e lutar sozinhos sem orientação superior. São muito mais organizados que uma colmeia sem rainha.







 Deus, a Verdade e o Sentido da Vida 

   Deus existe? O que significa ser humano? O que é a verdade? Qual é o sentido da vida? São perguntas que nos atormentam durante toda a nossa existência neste mundo. Hiromu Arakawa debruça-se sobre estas questões, estuda-as de vários ângulos, chega às suas conclusões, mas nunca nos dá uma resposta cabal. Certamente confia no poder de raciocíno do seu público!

   A existência de deus revela-se na personagem da “Verdade”, um ser que se descreve com vários nomes; entre os quais o universo, o todo, a parte, e até o próprio visitante que comete o tabu da transmutação humana.

   Bem, quando muitos de nós pensamos em Deus, pensamos nisto:

deus, de acordo com Michelangelo
não nisto...   

A Verdade, o deus de Fullmetal Alchemist
   A “Verdade” não é como o deus abraâmico que expulsa seres humanos do paraíso por comerem um fruto; que deixa um homicídio em primeiro grau passar incólone; que transforma uma mulher numa pedra de sal por ela ter olhado para trás ou que faz apostas com o mafarrico com a vida de um dos seus mais fiéis seguidores. O deus de Fullmetal Alchemist limita-se a ficar sentado na sua dimensão branca, castigando todos os que transgridam as leis do universo, nomeadamente a lei da troca equivalente. Desde que sigam essas leis, os humanos de Fullmetal Alchemist nunca se encontram com deus – estão entregues a si mesmos.

   Em toda a história, há apenas algumas referências a deus e são feitas por dois médicos, que participaram na guerra civil, e um monge ishvalita. Quando o Dr. Knox, médico de feitio amargo, é surpreendido pela mulher e o filho, as lágrimas caem-lhe pelo rosto e ele pede a um deus que não sabe existir que lhe conceda um momento de felicidade, apesar de não se achar digno de tal.

   Tim Marcoh foi um dos médicos directamente responsável pela criação da pedra filosofal. Quando se encontra com Scar, implora-lhe que o mate e chega a considerar o ishvalita uma figura divina.

   Scar que, ironicamente, se considera “a mão de deus”, punindo os alquimistas nacionais pela sua participação na guerra de extermínio do seu povo, renuncia ao seu nome e usa alquimia para se vingar deles; duas atitudes que atentam contra a vontade do seu deus Ishvala.

   Do outro lado do espectro, Edward Elric considera-se um ateu, apesar de ter encontrado a “Verdade”.



A conversa entre ele e Rose, a devota do deus Leto, deixa claro que fé e orações de nada servem para encontrar as respostas para os grandes enigmas da Humanidade, ou mesmo encontrar um sentido para a vida. Se bem que eu não lhe chamaria agnóstico, nem mesmo ateu… Diria antes que ele é o mais jovem misoteísta da ficção! 

   Contudo, quando os irmãos vão a Rush Valley, acabam a fazer pedidos a um qualquer deus que possa existir.


   Hiromu Arakawa disse numa entrevista que a “Verdade” é uma espécie de “negativo”; um “Deus interno” ou a consciência do alquimista que a visita. Na adaptação de 2009, a “Verdade” fala com a voz do visitante e usa os pagamentos que cobrou dos alquimistas que realizaram transmutações humanas – no caso do Edward, a “Verdade” usa o braço e a perna que tirou ao garoto quando este tinha apenas 11 anos. 



   Quando a “Verdade” diz: “eu sou aquilo a que vocês chamariam de Deus” não está a afirmar categoricamente que é Deus. O conceito de ‘deus’ é uma construção humana. A “Verdade” parece existir simplesmente para supervisionar todas as transmutações realizadas por alquimistas e punir aqueles que se atrevem a entrar no domínio de Deus. 

   A maioria das religiões tem um conceito de ‘deus’ como uma figura protectora do planeta Terra em geral e da espécie humana em particular. Para os herdeiros das tradições judaico-cristãs é muito difícil conceber um deus que se mostra indiferente quanto ao destino da raça humana. A “Verdade”, pela forma como se apresenta aos alquimistas que abriram a porta, é um conceito profundamente panteísta de deus. Imaginem um organismo unicelular, de onde vem e para onde vai toda a realidade. 



   A lição mais importante de todos os aprendizes de alquimia é ‘um é o todo. O todo é um.’ Se esta lição for assimilada por bem, os aprendizes vivem uma vida boa, mas se forem incapazes de entender devidamente a lição, é provável que tenham de  pagar um preço demasiado elevado, como é o caso dos nossos jovens protagonistas. Todos os alquimistas que infringiram a lei da troca equivalente foram severamente castigados. Mesmo compreendendo a ciência por detrás do ritual proibido, nenhum deles conseguiu resolver o enigma por detrás da tentativa de ressuscitar um ser humano – como recriar uma alma. Não havendo propriamente um conceito de vida após a morte em Fullmetal Alchemist, toda a questão da alma parece ser do domínio exclusivo de Deus. A “Verdade” diz que é parte integrante de quem a visita. Se todos os seres possuem uma alma, todos eles têm a sua própria verdade e a “Verdade” é a soma de todas as partes. Esta ideia de que a “Verdade” é o próprio universo parece saída da obra de Spinoza. Não sabemos se Hiromu Arakawa se cruzou com o filósofo holandês enquanto realizava as suas pesquisas, mas é interessante pensar nisso.

   O conhecimento que se encontra na porta da Verdade, e que os alquimistas adquirem quando tentam uma transmutação humana, parece-se com o conceito teosófico dos registros akásicos: uma compilação de todo o conhecimento passado, presente e futuro.









 E a Alquimia, onde fica? 

   Ao contrário da alquimia que se pratica na manga, a alquimia do mundo real destinava-se a uma só coisa: transformar metais em ouro. Bem, uma só coisa não... afinal, a alquimia pratica-se desde o antigo Egipto, combinando elementos como filosofia e mitologia. Na Grécia, o hermetismo era uma filosofia que combinava três disciplinas: astrologia, magia e alquimia. Para os leigos, a alquimia é a arte de transformar metais comuns no único metal perfeito que existe: o ouro. Parece um conceito incrivelmente materialista e mesquinho, uma prática oculta onde impera a ganância e a sede de poder absoluto… Contudo, o que os alquimistas buscavam acima de qualquer coisa era outro tipo de ouro: um ouro espiritual. Ao contrário de Fullmetal Alchemist, onde o estudo e a prática da alquimia são tratados como uma ciência dura, no nosso mundo eram tratados como uma prática mística, uma busca por uma comunhão com Deus. O estudo desta arte era quase uma prática religiosa em si mesma, que ansiava pela regeneração e purificação da alma humana. Estas práticas ocultas saíram do Egipto e entraram pela Grécia, espalhando-se pela Europa, Índia e China, ganhando numerosos adeptos, ansiosos por encontrar a Pedra Filosofal. Também conhecida como o elixir da vida eterna, ou o veículo da iluminação espiritual, a Pedra Filosofal, de que já os gregos falavam, é uma substância que transforma metais em ouro e que simboliza a perfeição – algo a que todos os alquimistas aspiram. 

   Não deixa de ser curioso que muitos alquimistas no passado tenham sido médicos e homens de grande fé. O escritor Zosimos de Panopolis era um cristão gnóstico; Albertus Magnus era um bispo católico dominicano e Jean de Roquetaillade pertencia à ordem franciscana. A fé e a crença em Deus nunca impediram estes homens de se aventurarem numa busca menos dogmática pela iluminação espiritual. A par deles, homens das ciências exactas, como Petrus Bonus, um médico italiano; Andreas Libavius, um médico e químico alemão; Isaac Newton, matemático e físico inglês, e Paracelso, médico e astrólogo suíço também eram atraídos pela arte da alquimia.

   Esta arte não escolhia nacionalidades nem profissões. Pessoas de todos os países e áreas da vida eram irremediavelmente atraídas pela busca pela imortalidade encarnada, por uma panaceia e pela crisopeia, a transmutação de metais menores como o cobre e o aço em prata e ouro.

   Do conjunto ecléctico de pessoas que procuraram refúgio na alquimia ao longo da história, destaca-se um homem: o francês Nicolas Flamel. Embora seja impossível saber se este escrivão do séc. XV foi ou não um alquimista que encontrou a pedra filosofal e conseguiu a imortalidade, é quase certo que a sua influência está bem patente na disciplina da alquimia. 










 Os Símbolos de Fullmetal Alchemist 

   Hiromu Arakawa estudou várias obras sobre alquimia e há vários símbolos alquímicos que aparecem na manga.


Cruz de Flamel
símbolo no casaco do Edward













 
Este símbolo está ligado ao francês Nicolas Flamel e representa uma serpente crucificada, que simboliza o inconsciente humano. Os alquimistas usavam este símbolo para representar a transformação de mercúrio, o deus mensageiro, representado com asas. O símbolo em cor preta sobre um fundo vermelho faz parte do padrão do nosso protagonista.



   A cruz de Flamel está ligada à criação da pedra filosofal. Em tempos idos, acreditava-se que, para criar a pedra filosofal, a prima materia (também conhecida como quintessência) deveria ser transmutada em quatro fases:

Nigredo: significa negro e é representativo da putrefação ou decomposição dos ingredientes alquímicos até se transformarem numa matéria negra uniforme.

Albedo: significa branco. Este processo é o que se segue ao nigredo, e significa a purificação de todas as impurezas.

Citrinitas: significa amarelo. Neste estágio, é possível transmutar prata em ouro, numa acção de “dourar a consciência lunar”.

Rubedo: significa encarnado. Este é o último estágio da Magnum Opus e significa o sucesso alquímico: a criação da pedra filosofal! Os alquimistas usavam outros símbolos para se referirem a um processo alquímico bem sucedido, como um rei coroado ou uma fénix. Isso pode explicar as asas e a coroa juntamente com a cruz de flamel no casaco do Edward.


árvore da vida
   O relevo da porta do Edward é uma Árvore da Vida Sefirótica; um símbolo cabalístico criado pelo inglês Robert Fludd (um médico que estudou a obra de Paracelso). A Árvore da Vida representa a criação do Universo e todas as verdades a que o Homem aspira.


The Marrow of Alchemy

   O relevo da porta do Alphonse também lhe é único: trata-se da imagem The Marrow of Alchemy do alquimista do séc. XV, George Ripley. Este símbolo também se refere a uma Árvore da Vida cabalística, mas está ligado à crença dos chacras e da ascensão de Kundalini como energia vital.
















   A tatuagem de ouroboros que os humúnculos possuem também tem um significado esotérico. “Um é Tudo, Tudo é Um” é um dos mantras da manga. O desenho mostra uma serpente (ou um dragão alado) mordendo a própria cauda e simboliza a natureza cíclica dos elementos que governam o mundo. Os humúnculos são seres imortais, cujo poder advém das suas pedras filosofais. O hexagrama no centro da serpente nada tem que ver com o selo de Salomão. Na alquimia, o hexagrama representa a união de dois triângulos que simboliza a reconciliação de dois polos opostos: o fogo e a água. Também simboliza a união dos quatro elementos essenciais à vida: fogo, água, terra e ar.



   O símbolo nos relógios de bolso dos Alquimistas Nacionais é um dragão prateado. Na alquimia, o dragão é um símbolo que está associado aos elementos da água, da terra, do submundo e do céu.











 O Fenómeno


Fullmetal Alchemist ganhou inúmeros prémios: em 2004 ganhou o 49º Shogakukan Manga Award. Em 2010 e 2011 ganhou o Eagle Award na categoria de melhor manga, por voto popular. Hiromu Arakawa ganhou o prémio de "Novo artista", o 15º Tezuka Osamu Cultural Prize em 2011. Também em 2011, a manga ganhou o Seiun Award, para melhor livro de banda desenhada. Fullmetal Alchemist apareceu ainda nas listas de melhores romances gráficos do New York Times e do USA Today.  

Em 2015, a manga já tinha ultrapassado os 64 milhões de exemplares por esse mundo fora.

Em Portugal, não há tradução nacional desta obra… É muito triste que uma manga destas não esteja traduzida mas, para quem souber ler bem inglês, há a tradução da Viz Media. Todos os volumes estão à venda nas grandes livrarias nacionais.




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