Ah, quem escreverá a história do que
poderia ter sido?
Será essa, se alguém a escrever,
A verdadeira história da humanidade.
O que há é só o mundo verdadeiro, não é
nós, só o mundo;
O que não há somos nós, e a verdade está
aí.
Sou quem falhei ser.
Somos todos quem nos supusemos.
A nossa realidade é o que não conseguimos
nunca.
Que é daquela nossa verdade — o sonho à
janela da infância?
Que é daquela nossa certeza — o propósito à
mesa de depois?
Medito, a cabeça curvada contra as mãos
sobrepostas
Sobre o parapeito alto da janela de sacada,
Sentado de lado numa cadeira, depois de
jantar.
Que é da minha realidade, que só tenho a
vida?
Que é de mim, que sou só quem existo?
Quantos Césares fui!
Na alma, e com alguma verdade;
Na imaginação, e com alguma justiça;
Na inteligência, e com alguma razão —
Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus!
Quantos Césares fui!
Quantos Césares fui!
Quantos Césares fui!
Quase sem querer (se o soubéssemos!) os
grandes homens saindo dos homens vulgares
O sargento acaba imperador por transições
imperceptíveis
Em que se vai misturando
O conseguimento com o sonho do que se
consegue a seguir
E o caminho vai por degraus visíveis,
depressa.
Ai dos que desde o principio vêem o fim!
Ai dos que aspiram a saltar a escada!
O conquistador de todos os impérios foi
sempre ajudante de guarda-livros
A amante de todos os reis — mesmo dos já
mortos — é mãe séria e carinhosa,
Se assim como vejo os corpos por fora,
visse as almas por dentro.
Ah, que penitenciaria os Anjos!
Que manicómio o sentido da vida!
–– Álvaro de Campos
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