25 de outubro de 2020

A Mãe de Todo o Terror

"All happy families are alike; each unhappy family is unhappy in its own way."

Leo Tolstoy - Anna Karenina


capa de Chi no Wadachi

     O único amor verdadeiramente incondicional é entre pais e filhos. Mas como diz o filósofo Gregory House: “todos nós somos ‘estragados’ pelos nossos pais.” As suas qualidades e defeitos são decalcadas nas almas da sua prole, às vezes, a vida toda. Quando somos crianças, idolatramos os nossos pais. Quando entramos na adolescência, rebelamo-nos contra eles numa tentativa de forjarmos a nossa própria identidade. Quando chegamos à idade adulta e temos os nossos próprios filhos, perdoamos os nossos pais por tudo o que eles nos fizeram, porque entendemos o seu esforço para nos dar tudo do bom e do melhor. 

     O que é que fariam se descobrissem que a pessoa que vos pôs no mundo é a pessoa em quem menos podem confiar? 

     Seiichi Osabe é um jovem de 14 anos que vive com o seu pai (Ichiro) e com a sua mãe (Seiko), numa cidadezinha na prefeitura de Gunma, no Japão. Uma família aparentemente normal, que vive uma existência aparentemente normal. Num dia quente de Verão, a família Osabe vai fazer um passeio nas montanhas e enquanto Seiichi se diverte com o seu primo Shigeru, ele vê a sua mãe fazer algo chocante. Um acontecimento trágico, que altera para sempre a dinâmica da família Osabe. Tudo isto se passa nos primeiros seis capítulos da série. 

     A partir daqui, é um sem fim de capítulos de terror psicológico a que Shūzō Oshimi já habituou os seus leitores em obras anteriores, como Hapiness e Flowers of Evil.

     Blood On The Tracks, ou A Trail of Blood, como ficou conhecida, (para evitar confundi-la com o álbum de Bob Dylan) é uma obra que… bem… Por onde começar?

     Começo pelos seus pontos fortes: Shūzō Oshimi é um mangaka exímio no desenho do rosto humano e de todas as suas possíveis expressões. Ele é capaz de contar uma história inteira através das expressões faciais das suas personagens. O seu estilo minimalista poupa nos elementos desnecessários do fundo das pranchas da banda desenhada e concentra-se em ilustrar metodicamente as expressões faciais das suas personagens. Esses fundos, muitas vezes vazios, colocam-nos numa atmosfera sufocante de privação sensorial. Tudo o que podemos fazer é concentrarmos a nossa atenção nas emoções das personagens e na acção que se desenrola lentamente diante dos nossos olhos. 

     Contudo, ele também é muito eficaz em utilizar a acção de fundo e a luminosidade para acentuar o tom da história, chegando a ilustrar páginas inteiras de planos de fundo para demonstrar o estado psicológico das suas personagens. 

O estado de alma do protagonista

     A atenção aos detalhes é outro ponto forte deste mangaka. Esta história contém um quebra-cabeças que o protagonista está a tentar resolver, uma memória que o assombra desde a infância e o autor é meticuloso em criar um cenário em que todos os detalhes sejam relevantes para a grande revelação final. 

 

     O ritmo da história é muito bem trabalhado. Alguns leitores podem achá-lo demasiado lento – os capítulos têm menos de trinta páginas – mas a verdade é que ele vai aumentando o suspense lentamente, sempre do ponto de vista do protagonista. Cada gesto, cada expressão facial é levada ao limite e o Oshimi consegue fazer coisas que o Alfred Hitchcock, no auge da sua carreira, não conseguiu fazer. Eu digo isto porque é muito fácil criar suspense com uma câmara de filmar e um compositor para criar música para o efeito. Quando só se tem um papel e uma caneta, é muito mais difícil criar o mesmo efeito aterrador nos leitores e o Oshimi é exímio nisso. Visualmente, Shūzō Oshimi é um génio na composição das páginas, criando uma atmosfera tensa, sufocante até! O leitor vê-se aprisionado nas páginas da manga, incapaz de desviar o olhar do horror que se desenrola à sua frente, como um feitiço. 

     Quais são os seus pontos fracos? Do ponto de vista técnico e da narrativa, não vejo nenhuns. Penso que é uma questão de gosto. A verdade é que esta manga não é para toda a gente e é improvável que agrade a um público alargado. 

     Chi no Wadachi é um thriller de terror psicológico, uma montanha russa de emoções, e alguns leitores preferirão outro tipo de história… Mas vou contar-vos uma coisa: depois de ler esta manga, descobri que tive uma infância feliz. Pode parecer estranho, mas nunca tinha tido este epifania! É um dos efeitos secundários positivos de ler esta manga.

 

     Assim, esta obra só tem uma desvantagem: não é recomendável a pessoas com um passado de abuso infantil. Conheço pessoas nesta situação que a leram e ficaram mais perturbadas do que eu, o que é inevitável, quando memórias dolorosas vêm ao de cima. É suposto uma história de terror aterrorizar os leitores, mas para quem já vive atormentado pelo seu passado, talvez seja mais difícil ler esta manga.

 

     Para Shūzō Oshimi, teria sido muito mais fácil ter escrito uma história cómica, do estilo de About a Boy (que também lida com temas complicados, mas com humor)… Mas ele escolheu o caminho mais difícil. O tema das relações tóxicas entre pais e filhos é muito complexo e, francamente, muito desagradável! Não consigo imaginar pior história de terror do que pais que maltratam os filhos. Esse é um dos principais motivos que me levam a respeitar tanto este autor, porque não é fácil pôr o dedo na ferida e dizer a verdade quando se trata deste tema tabu na sociedade. No que toca a temas desagradáveis, ponho-o na mesma categoria que o Mark Twain, ou o William Golding, ou o George Orwell. Todos eles escreveram romances terrivelmente desconfortáveis de ler, mas incrivelmente verdadeiros nos temas que abordam, e essenciais para a Literatura. 

 

     Há um outro aspecto que o demarca dos demais mangakas. A maioria das personagens das mangas têm um aspecto muito peculiar: o cabelo; o feitio do rosto; o tamanho dos olhos… As ilustrações de Shūzō Oshimi são incrivelmente realistas. Ele parece estar a desenhar à vista e não personagens de ficção, o que aumenta a nossa sensação de terror à medida que viramos as páginas.





     Aconselho vivamente a leitura desta manga, porque, para dizer a verdade, se tivermos que passar por experiências muito difíceis na vida, o ideal é fazê-lo através de uma história de ficção. Podemos sempre colocar a manga na prateleira depois de a ler e regressar à nossa vida real com as lições que aprendemos da história.

     Na semana em que se soube que a mãe que tentou matar o filho recém-nascido foi condenada a 9 anos de cadeia, Portugal ficou colado à televisão, ouvindo novamente a história que chocou o país. Esta, juntamente com a notícia da mulher que apanhou 25 anos de cadeia por afogar as duas filhas na praia de Caxias, são notícias que nos causam náuseas e revolta, e que nos prendem à televisão, incapazes de nos desligarmos da realidade, que é sempre muito dura. E dela não podemos escapar.

     Pouco importa o quão desagradável qualquer leitura possa ser; será sempre mais agradável do que lidar com as consequências emocionais de uma infância marcada por abusos parentais. Por isso, recomendo a leitura de Blood on Tracks. Podem encontrar a obra no site da Wook. Ainda chega a tempo do Dia das Bruxas.




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