7 de janeiro de 2021

Americano de Gema


Que Mark Twain é o melhor escritor que o mundo jamais viu, não resta qualquer dúvida! E acreditem que não faço esta afirmação de ânimo leve. É fácil escrever frases poéticas, deslumbrantes e memoráveis; é relativamente fácil filosofar sobre as grandes questões que atormentam a Humanidade; também não é difícil arrancar uma gargalhada a um leitor… Difícil é enobrecer o dialecto norte-americano. Complicado é lidar com todas as feridas abertas daquela jovem nação (e, por consequência, as feridas da Humanidade inteira); desconcertante é usar o humor como arma filosófica e não como um fim em si mesmo. Mark Twain reúne em si todos estes dons… e há um um livro que personifica este espírito mais do que qualquer outro: As Aventuras de Tom Sawyer



Pensavam que eu estaria a referir-me às Aventuras de Huckleberry Finn?! Neste post, não. 

Passo a explicar-me: para muitos, As Aventuras de Huckleberry Finn é o supra-sumo da literatura Norte-americana do séc. XIX (e até mesmo do séc. XX, segundo alguns estudiosos). O Huck Finn sempre foi mais tratado como uma marcante obra literária – um ponto de viragem, mesmo. Já o Tom Sawyer sempre foi visto mais como um livro para crianças… E eu sempre achei isso uma tremenda injustiça!

Não me interpretem mal: reconheço que o Huck Finn tem qualidades que fazem dele um livro apelativo a nível mundial, independentemente do seu contexto cultural… Mas o Tom Sawyer também as tem. Por que motivo tem Huck Finn o direito de ser rotulado como um 'clássico da literatura universal', enquanto o Tom Sawyer é relegado para as prateleiras de livros infantis? 

É de notar que para os críticos literários, um livro para crianças é um eufemismo para 'livro para seres de pouca capacidade mental e, portanto, pouco apropriado para adultos'. Contudo, não foram os críticos literários que inferiorizaram as As Aventuras de Tom Sawyer para engrandecer as Aventuras de Huckleberry Finn. Talvez o primeiro responsável pela cisão entre as duas obras seja o próprio Mark Twain.

O Tom e o Huck são grandes amigos, cada um inveja a vida que o outro leva, e ambos os livros estão unidos mas, para além disto, as duas obras são totalmente independentes uma da outra. Acredito que é impossível compará-las, porque os temas que Twain explora em ambos os livros não se entrecruzam. (Seria mais lógico comparar o Animal Farm com o Nineteen Eighty-Four de George Orwell, visto que são ambas obras distópicas).

É preciso ter em conta também que a opinião de Twain acerca do Tom Sawyer (da personagem e do livro) foi mudando ao longo dos anos. Isso é visível na sua caracterização quando ele aparece em Huck Finn. Tom é transformado numa caricatura de si próprio (como se todas as lições aprendidas tivessem sido imediatamente esquecidas) quando tenta libertar o (já livre) escravo Jim, como se fosse uma das suas inúmeras aventuras ao estilo de Robin Hood. Ao dizer isto, não posso esquecer como o próprio Huck é tratado quando o Tom reaparece na trama: de repente, parece já não se importar com o facto de Jim ter sido apanhado e entra nos esquemas do amigo como se a relação que desenvolvera com Jim já nada significasse para ele. Aliás, as caracterizações das duas personagens são usadas como crítica às Aventuras de Huckleberry Finn, alegando que a parte das 'aventuras' mina  a seriedade de sua crescente amizade com Jim, bem como as lições que ele aprendeu pelo caminho sobre o racismo e a condição humana.  

Sem querer divagar mais, Twain acreditava que o repetidamente censurado Huckleberry Finn tinha um valor literário muito superior ao favorito do povo que era Tom Sawyer. É verdade que o repetido acto de censurar As Aventuras de Huckleberry Finn pelo uso constante da palavra 'nigger' criou um interesse muito maior por esta obra por parte dos críticos literários. Ao longo dos tempos, Huck Finn tornou-se mais respeitado, enquanto o Tom Sawyer foi ignorado como um livro sem grande profundidade intelectual, adequado apenas para crianças.

Contudo, a profundidade intelectual de um livro como As Aventuras de Tom Sawyer está à vista de quem se der ao trabalho de olhar com alguma atenção. A forma magistral como Twain desenvolve os temas da maturação social do seu protagonista, bem como os vários momentos de hipocrisia daquele microcosmo da sociedade norte-americana e a exclusão social de alguns dos seus membros é algo maravilhoso de se ler e, claro que as crianças se vão focar nos episódios da cerca e da ilha dos piratas e não vão compreender a complexidade da obra. Parte dessa complexidade prende-se com as personagens e outra parte deve-se à narração. Uma criança, ou mesmo um adolescente, terá dificuldade em compreender e apreciar as múltiplas nuances no discurso irónico do narrador. O próprio Twain disse que o seu livro seria mais apreciado por adultos com um sentimento nostálgico em relação à sua infância.

Em última análise, As Aventuras de Tom Sawyer recomenda-se a quem quiser desfrutar de uma boa história, com um acutilante, mas cómico, comentário social.

Mark Twain passou o resto dos seus dias convicto de que o Tom Sawyer era um dos seus livros mais medíocres; tanto assim é que, quando o Tom aparece n' As Aventuras de Huckleberry Finn, a sua personagem parece ter sofrido algumas alterações... Alguns traços da sua personalidade foram exagerados, transformando a personagem numa paródia de si mesma. Apesar dos sentimentos do autor, o Tom Sawyer caiu nas boas graças do público e a personagem foi imortalizada no cinema e na televisão.

De facto: antes de eu saber ler, já conhecia o Tom Sawyer e o seu amigo Huck... 

As Aventuras de Tom Sawyer - produzido pela Nippon Animation

A mítica animação que foi ao ar em 1980, fazia parte de uma série intitulada “World Masterpiece Theater” que apresentava grandes obras da literatura ocidental ao público japonês. Por cá, estreou-se em 1981, na RTP. Com as incomparáveis Ermelinda Duarte (voz do Tom) e Irene Cruz (voz do Huck) e com a direcção de João Lourenço, a série teve um sucesso considerável e repetiu mais duas vezes no final da década e já no início dos anos 90.

Nos seus 49 episódios, a série contava a história d’ As Aventuras de Tom Sawyer continha alguns elementos d’ As Aventuras de Huckleberry Finn e até tinha um episódio onde or rapazes fazem um concurso com rãs saltadoras (outro dos contos de Twain). Esta série – mais do que uma adaptação de um livro – é uma verdadeira homenagem ao maior escritor norte-americano. A adaptação japonesa apresentou muitas crianças ao génio de Mark Twain, e por isso lhes agradeço para o resto da vida.

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