A recente ameaça de acabar com o Plano Nacional de Leitura (PNL) e com as bibliotecas escolares causou grande alvoroço nas redes sociais.
Isso é bastante curioso porque segundo um estudo do Plano Nacional de Leitura (PNL 2027) e do ISCTE mostra que os jovens portugueses têm lido cada vez menos desde 2007. Em 2019: 21,8% dos alunos do 3.º ciclo e secundário disseram não ter lido nenhum livro por prazer nos 12 meses anteriores. Em 2007, esse número era de 11,9%. A percentagem de alunos que não leram qualquer livro por lazer no secundário subiu de 11,3% para 26,2%. A influência da família e o uso das bibliotecas escolares foram apontados como factores importantes para o hábito de leitura.
Outro artigo do PNL 2027 confirma que os níveis de leitura em Portugal têm vindo a diminuir, especialmente entre os mais jovens e mais escolarizados.
A única conclusão possível é que o PNL é não serve para nada!
Embora tenha sido criado em 2007 por aquele génio do mal (cujo nome não vou referir) creio que tinha uma intenção nobre, mas ignorou algo fundamental sobre o ser humano, sobretudo o adolescente: tudo o que tente impor a um adolescente será prontamente rejeitado.
Imagino que o público-alvo deste projecto sejam jovens que ainda não encontraram o livro que os apaixonará... Na verdade, é assim que acontece. É preciso um livro, um livro muito especial, que faça uma pessoa apaixonar-se por ele e depois queira ler outros livros para replicar esse sentimento. É como uma droga, na verdade. Presumo eu, que nunca consumi drogas... graças a um livro.
Se queremos que as crianças leiam mais livros, precisamos de lhes incutir esse gosto desde a infância. É tão simples quanto isso. E, lamento dizer, nem isso garante um resultado positivo. Muitos pais leram livros aos filhos quando eram crianças e muitas dessas crianças nunca desenvolveram hábitos de leitura quando cresceram.
Algumas pessoas simplesmente não gostam de ler. É estranho, eu sei, mas também é estranho ver pessoas que não gostam de chocolate! É evidente que nenhuma actividade neste mundo é universalmente adorada.
O actual Ministro da Educação Fernando Alexandre garantiu que o PNL não será extinto e, no entanto, tenho as minhas dúvidas sobre a sua eficácia em influenciar mentes jovens. O PNL não produziu os resultados esperados desde a sua concepção. Pergunto-me se as pessoas que estão a organizar uma petição pública estão convencidas que vai haver uma reviravolta nos hábitos de leitura dos jovens? Acho altamente improvável.
Na minha infância, o meu primeiro livro “seduziu-me e envolveu-me por completo”. Até esse momento, “nunca tinha conhecido o prazer de ler, de explorar os recônditos da alma, de me deixar levar pela imaginação, pela beleza e pelo mistério da ficção e da linguagem”. Já falei dele aqui, foi Os Cinco e a Ciganita. As palavras entre aspas são d’ A Sombra do Vento, as quais subscrevo sem reservas e conheço muitas pessoas que também as subscrevem.
A maior recompensa da leitura reside no prazer da descoberta de um livro novo e na magia de ver os pingos de tinta transformarem-se, como por magia, em imagens, em cheiros, em sons — numa gloriosa viagem dos sentidos e da imaginação. Citando novamente A Sombra do Vento:
“Cada livro [...] tem uma alma. A alma de quem o escreveu e a alma de quem o leu, viveu e sonhou com ele. Cada vez que um livro muda de mãos, cada vez que alguém percorre as suas páginas com o olhar, o seu espírito cresce e fortalece-se.”
A experiência de leitura é pessoal, intransmissível e, de certo modo, involuntária. Se um leitor entrar numa livraria, não se irá apaixonar por todos os livros que nela constam. Só um número reduzido de livros irá movê-lo no sentido da leitura. Nesse aspecto, há algo de profundamente misterioso na relação entre o leitor e o livro. Na minha opinião, os livros escolhem-nos a nós e não o contrário. Carlos Ruiz Zafón articulou esta inexplicável relação entre o leitor e o livro de forma muito eloquente n’ A Sombra do Vento.
A razão pela qual nunca consumi drogas foi graças a um livro chamado A Lua de Joana. Este livro, como tantos outros, chegou-me inesperadamente, numa aula de Geografia, no oitavo ano. A minha professora, sem mais nem menos, leu-nos a célebre carta de 20 de Fevereiro de 1994 (entendedores entenderão). Não sei quantos dos meus colegas ficaram tão fascinados pela leitura como eu, mas assim que cheguei a casa perguntei se tínhamos aquele livro e, após receber uma resposta positiva, percebi que o meu irmão estava a coleccionar “O Clube das Chaves”.
Assim, após terminar A Lua de Joana, comecei obviamente a ler os livros d’ “O Clube das Chaves”... E depois d’ “O Clube das Chaves” comecei a ler o “Triângulo Jota”. Nunca me faltava material novo e fazer uma colecção era muito emocionante.
Já falei anteriormente sobre A Sombra do Vento; este livro também veio ter comigo através de um amigo da faculdade que mo emprestou, iniciando uma paixão pela obra de Zafón. Muitos livros na minha vida chegaram até mim como se me tivessem escolhido, tal como “A Sombra do Vento” do Julián Carax escolheu o Daniel Sempere, mesmo que o pai o tenha levado pela mão até ao Cemitério dos Livros Esquecidos. Aconteceu com O Principezinho, aconteceu com o Fernão Capelo Gaivota, aconteceu com o About a Boy e aconteceu com o Mil Novecentos e Oitenta e Quatro.
De outros livros corri atrás como o Tom Sawyer, o Huckleberry Finn, A Insustentável Leveza do Ser, Cartas a um Jovem Poeta, O Filósofo e o Lobo, Ethan Frome, etc. Fernando Pessoa é sui generis; li alguma da sua obra na escola, mas simplesmente não lhe prestei a atenção devida. Foi necessária uma redescoberta através de um documentário da RTP chamado “Grandes Livros” e de um episódio sobre O Livro do Desassossego para que me aprofundasse na sua obra e me apaixonasse por ela.
Faço parte de uma geração que cresceu com o “World Masterpiece Theater”; um conjunto de obras literárias animadas por estúdios no Japão como a Nippon Animation, exibidas entre 1969 e 1997.
Crescemos a ver “Heidi, “Um Cão da Flandres”, “Rascal, o Guaxinim”, “Ana dos Cabelos Ruivos”, “As Aventuras de Tom Sawyer”, “A Família Robinson”, “A História de Pollyanna,” “As Mulherzinhas” e “As Aventuras de Peter Pan”, familiarizando-nos com nomes como Hans Christian Andersen, Thornton Burgess, Johanna Spyri, Maria Louise Ramé, Thomas Sterling North, Lucy Maud Montgomery, Mark Twain, Johann David Wyss, Eleanor H. Porter, Louisa May Alcott e J. M. Barrie, só para citar alguns.
Outras obras literárias, como Abelha Maia, Os Três Mosqueteiros, Nils Holgersson, Alice no País das Maravilhas, Zorro e “As Misteriosas Cidades de Ouro”, não fazem parte do “World Masterpiece Theater”, mas também foram adaptadas por estúdios de animação japoneses. A obra de Alexandre Dumas foi tão acarinhada no Japão que teve direito a duas adaptações — uma pela Nippon Animation e outra pelo Estúdio Gallop.
A geração que cresceu nas décadas de 70, 80 e 90 conheceu nomes como Waldemar Bonsels, Alexandre Dumas, Selma Lagerlöf, Lewis Carroll, Johnston McCulley e Scott O'Dell. O Zorro é uma personagem universalmente conhecida e adorada, embora poucas pessoas tenham lido The Curse of Capistrano, de Johnston McCulley, mas no caso de King’ Fifth de Scott O’Dell, a sua ligação com “As Misteriosas Cidades de Ouro” é tão ténue que é praticamente irreconhecível. No entanto, só quem gosta de ler é que entra numa livraria, vê o nome do autor e tem curiosidade em ler o livro.
O que me traz de volta ao meu ponto original: se não houver uma curiosidade natural sobre os livros e sobre leitura, nem experiências positivas com livros acumuladas ao longo dos anos, os livros não têm significado, mesmo para quem tenha sido inundado desde a infância por inúmeras adaptações animadas de grandes obras da literatura universal.
O prazer pela leitura tem de ser cultivado e um dos melhores exemplos dessa prática em Portugal é o caso d’ A Lua de Joana. A primeira edição foi livremente distribuída com um dos volumes da colecção “O Clube das Chaves”. O livro tornou-se tão popular nas escolas que muitos alunos começaram a montar peças de teatro. Em 2008, Maria Teresa Maia Gonzalez publicou uma resposta directa ao fenómeno com um livro intitulado Os Herdeiros da Lua de Joana em formato de peça de teatro, como forma de agradecimento e cativação de novas gerações de leitores. É preciso lembrar que A Lua de Joana foi um livro encomendado pelo Projecto Vida, mas foi divulgado junto do público leitor da forma mais orgânica possível e é por isso que teve tanto sucesso! Também há uma meta-referência deliciosa: a Joana Brito e os seus colegas de turma escrevem e organizam uma peça de teatro chamada “Os Amigos da Onça” sobre a morte da Marta.
Esta é a vida que todos os livros merecem. Uma vida onde o passa-palavra faz crescer a alma do livro e conquista novos leitores. A Joana Brito está mais viva do que nunca e nenhum autor pode esperar melhor destino para a sua obra. E adivinhem só? Nada disto aconteceu porque o Governo coagiu os adolescentes a ler este livro.
Sim, A Lua de Joana está no Plano Nacional de Leitura, mas a realidade que os apoiantes do PNL não querem enfrentar é que uma pessoa que não gosta de ler não vai, de um momento para o outro, desenvolver o interesse só porque o Estado português compilou uma lista. As listas, por muito extensas que sejam, nunca são suficientes, são sempre limitadas.
Há muitos anos atrás, arrancou um projecto revolucionário para um país tão pequeno como Portugal: a biblioteca móvel, inaugurada por António Branquinho da Fonseca. Este senhor acreditava piamente que as bibliotecas “deviam ser espaços onde o conhecimento formasse e educasse as pessoas, através do cumprimento de princípios inovadores à época, tais como: um serviço biblioteconómico de cariz gratuito que permitisse o empréstimo domiciliário (até cinco livros) das obras por um período alargado (mensal), favorecendo a partilha entre os membros da comunidade dos livros requisitados; um aconselhamento personalizado aos utilizadores sobre as leituras que, para eles, mais poderiam ser úteis; o livre acesso às estantes”.
A Rede de Bibliotecas Itinerantes da Gulbenkian começou em 1958 e terminou em 2002, quatro anos antes de ser criado o Plano Nacional de Leitura e, a meu ver, é uma abordagem mais orgânica e menos prescritiva, o que constitui uma genuína promoção da leitura. As icónicas carrinhas da Citroën, cheias de livros, que se espalhavam por todo o país, especialmente nas zonas rurais onde as pessoas nunca tinham visto uma biblioteca antes, criaram gerações inteiras de pessoas com uma profunda paixão pelos livros. A leitura era apresentada como um universo de infinitas possibilidades, onde cada um podia encontrar a sua própria estrela.
Um livro é tanto um passaporte para outro mundo como uma máquina do tempo para outra era. Como dizia Bernardo Soares: “Para viajar basta existir. [...] Se imagino, vejo. Que mais faço eu se viajo? Só a fraqueza extrema da imaginação justifica que se tenha que deslocar para sentir. [...] A vida é o que fazemos dela. As viagens são os viajantes. O que vemos, não é o que vemos, senão o que somos”.
Excelente reflexão!
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